domingo, 10 de fevereiro de 2019

Dorrit Harazim: Cacofonia nacional

- O Globo

Chama a atenção nas tragédias do Rio o despreparo das autoridades para atender às expectativas mínimas de uma coletividade desnorteada

Pelas normas brasileiras, o instituto do luto oficial de oito dias ocorre somente em caso de morte de presidente. Quando o morto é um cidadão que prestou serviços considerados relevantes ao país, como foi o caso do vice-presidente (2003-2010) José Alencar, a homenagem dura sete dias. De resto, são três dias, sempre seguindo um ritual ao qual à nação costuma ficar indiferente: hasteamento da bandeira a meio mastro em todas as repartições públicas federais, estaduais ou do município que decretou a medida.

Não importa a natureza do que se pranteia nem a extensão de cada tragédia. Pode ser Brumadinho, com seus 157 mortos até agora (sem contar a mortandade ambiental), ou o município do Rio de Janeiro, onde o dilúvio-arrastão de quarta-feira arrancou entranhas de parte da cidade e fez sete mortos. E desde sexta-feira, três dias a mais de bandeiras a meio pau, desta vez em repartições estaduais para dar conta de dez adolescentes carbonizados no incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo, em Vargem Grande.

Todos estavam dormindo no momento em que o fogo se espraiou pela estrutura de tipo contêiner. Seus nomes agora são conhecidos por estarem mortos, não pelo que sonharam mostrar em campo. E é com este luto não oficial, íntimo e sem prazo nem regras para acabar, que famílias, amigos e torcedores vão ter de aprender a conviver. O moderno local de cinco mil metros quadrados não possuía o certificado do Corpo de Bombeiros que atesta o funcionamento dos dispositivos contra incêndio. O que chama a atenção nas duas tragédias da semana fluminense é o despreparo das autoridades para atender às expectativas mínimas de uma coletividade desnorteada. O general Dwight Eisenhower não criou apenas um bon mot ao assegurar que “planos não são nada, planejamento é tudo”, referindo-se à invasão do Dia D na Segunda Guerra. É quando tragédias ocorrem, sejam elas um ataque terrorista, uma tempestade bíblica, um incêndio de grandes proporções, que lideranças se constroem ou se esboroam.

Líderes costumam ser julgados tanto por seus atos como por suas inações. Em tempos de calmaria, qualquer pessoa pode ficar no leme. Já na urgência e sob forte pressão, há basicamente dois caminhos: responder ou reagir. Convém estabelecer a diferença entre os dois, pois ela não é pouca. Reação é reflexo enquanto uma resposta deriva de todo um procedimento previamente elaborado, de um plano que contemplou o implausível.

No Brasil a cacofonia tem sido gritante.

Em sua primeira comunicação com munícipes ansiosos por informação e orientação, o prefeito Marcelo Crivella declarou achar importante “entendermos de forma inteligente os fatos”.
Difícil imaginar que haja duas formas de entender um fato pertinente não mencionado pelo prefeito: em dois anos de governo, ele investiu apenas 22% dos recursos destinados a controle de enchentes, contenção de encostas, fiscalização e monitoramento. Dos R$ 564 milhões não utilizados, não deu notícias. Também fez referência a uma “civilização carioca”, e talvez algum dia esclareça se essa nova sociedade humana está em evolução ou involução.

O governador Wilson Witzel apresentou-se no Centro Integrado de Controle vestindo flamejante colete personalizado da Defesa Civil sobre camisa e gravata. Garantiu que desde a manhã do dia da hecatombe “ já estávamos monitorando todo o movimento climático” e que “ já estávamos atentos a esta chuva que estava por acontecer ...” antes de atribuir a dimensão da tragédia a erros de prefeitos e governadores anteriores. Pecado capital: se tem algo que causa irritação dobrada a uma população em apuros é ouvir recriminações intestinas de autoridades.

Paralelamente às tragédias, o Brasil tem um presidente da República que há duas semanas se comunica com a nação postando fotos e mensagens de sua cama hospitalar, enquanto aguarda ser liberado para assumir o espaço ocupado pelo vice. Seu estilo é, no mínimo, incomum, ao socializar o pronome da primeira pessoa: “Nosso estado de saúde... “Estamos muito tranquilos... seguimos firmes”. Ao porta-voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros, cabe o mérito de tentar desempenhar sua função dentro de uma total anormalidade.

Para a mídia encarregada da cobertura presidencial, o novo normal começa pelo aprendizado da linguagem de Rêgo Barros. Por exemplo, “Eu os iluminei ontem...” significa “eu informei vocês”. O apreço do general pelo futuro do indicativo de verbos (“tratar-se-á”), e sua saudação de encerramento das coletivas com um “Paz e bem” já foram assimiladas. O problema está no que não é dito.

No caso do presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, que levou oito horas até fazer um comunicado de pesar, o que não foi dito é por demais abominável — a chave da tragédia pode estar com ele.

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