domingo, 3 de fevereiro de 2019

Frei Betto: Cadê a cultura política?

O Globo (2/2/2019)

Alguém deve pagar a conta. E ela sobra, invariavelmente, para os mais pobres

Cadê o novo? Cadê a moralidade? Dá vontade de fazer eco a Stanislaw Ponte Preta: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!”. De nada adianta o desalento. É entregar o ouro ao bandido. Desopilar o fígado nas redes digitais é acender fósforo para conferir se há gasolina no tanque...
A questão é mais profunda: não conseguimos criar no Brasil uma cultura política. A tradição patrimonialista, o mandonismo, o nepotismo, tudo isso esgarça o tecido de nossas instituições democráticas. A maioria se elege ou ocupa cargos públicos de olho nos proveitos pessoais e corporativos. Poucos têm princípios éticos e objetivos claros de serviço ao bem comum. Bastou aparecer a primeira “boquinha” de uma viagem à China e lá se foi, alvoroçado, um bando de deputados felizes com a mordomia.

A estrutura do Estado é vista como uma grande vaca, na qual cada um busca a teta mais gorda para a sua boca. O discurso da urgente contenção de gastos é como o sermão do padre que, ao celebrar missa para os alcoólicos anônimos, enchia seu cálice de vinho.

“Façam o que digo e não o que faço.” São sempre os outros que devem apertar o cinto em nome da salvação nacional. Nunca os políticos, os magistrados e os militares. “Nada é o bastante para quem considera pouco o suficiente”, já alertava Epicuro, no século IV a.C. Na apertada balsa que pretende conduzir a nação a um futuro melhor, atirem-se ao mar os sem mandato, os sem toga e os sem farda. Alguém deve pagar a conta. E ela sobra, invariavelmente, para os mais pobres.

Por que, no Brasil, soa como ofensa falar em imposto progressivo? Nessa descultura da boca pra fora, sobejam elogios a Noruega, Dinamarca e Suécia, onde vigora uma cultura política de fortes raízes. Mas aqui ninguém está disposto a ceder um grão de mordomia. O trio (mandato, toga e farda) do privilégio (termo que deriva de “lei privada”, que vale para uns e não para todos) não abre mão do auxílio-moradia, do plano de saúde especial, de carros e viagens aéreas pagas pelo contribuinte, férias prolongadas, seguranças etc. Essa gente nunca leu Platão e Aristóteles, Montesquieu e Rousseau, Habermas e Bobbio, e aprecia Gandhi e Mandela apenas como retratos na parede.

E cadê a oposição? Dizem que a esquerda (se é que ainda existe) só se une na cadeia... De fato, o caciquismo impede as forças da oposição de terem uma estratégia e um programa comuns. As críticas à situação são pontuais. E quase sempre emocionais, de pretender desconstruir o adversário, não por argumentos convincentes, e sim pela ridicularização e a galhofa.

Qual é a proposta alternativa da oposição à reforma da Previdência? E à retomada do crescimento, combate ao desemprego e melhoria da saúde e da educação? Cadê o trabalho de base, os vínculos orgânicos com as classes populares, a alfabetização política?

Apesar de tudo, não nos resta outra via fora da política. Pode-se odiá-la, repudiá-la ou ficar indiferente a ela. Mas é ela que determina a nossa qualidade de vida, como trabalho, moradia, alimentação e saúde. Quem não gosta de política é governado por quem gosta. E tudo o que os maus políticos desejam é que fiquemos alheios à política. Assim, damos carta de alforria a corruptos, nepotistas e similares.

Mas como criar uma cultura política se a Escola Sem Partido pretende proibir o tema nas salas de aula? Nossa incultura política é tão rasteira que, em vez de o Estado cumprir a sua função constitucional de dar segurança à nação, ele libera a posse de armas. E há quem esteja de acordo com o “cada um que se defenda!”. E seja o que Deus não quer...

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