sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Humberto Saccomandi: Populismo alimenta onda de irracionalismo

- Valor Econômico

Aversão à razão vai da rejeição a vacinas ao aquecimento global

O número de casos de sarampo cresceu 50% no mundo em 2018, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Cresceu mais, percentualmente, em países ricos. Há alguns fatores envolvidos, mas o que mais chama a atenção é a rejeição à vacina. Esse é um exemplo da crescente onda de irracionalismo, estimulada pela desinformação e pelo populismo, que está tendo impacto na política e na economia pelo mundo.

É irracional tomar decisões que prejudiquem a si próprio. Pessoas, empresas e governos, porém, costumam fazer isso por informação ruim ou insuficiente ou por avaliação equivocada. Mas o que parece ser novo é a escala com que decisões irracionais estão sendo tomadas mesmo tendo à disposição informação sobre os seus efeitos deletérios.

É o caso da vacina. As vacinas funcionam e salvam vidas. A sua massificação foi uma das causas do espetacular aumento da expectativa de vida no Século 20. Ainda assim, nos últimos anos tem crescido um movimento contra a vacinação. Ele foi inicialmente estimulado por um estudo de 1998 que apontava uma relação entre a vacina tríplice e o autismo em crianças. Essa conclusão foi rejeitada por todos os estudos subsequentes, o pesquisador britânico responsável foi punido, mas essa falsa relação continua a circular pela internet, assustando os pais.

Formaram-se desde então grupos organizados em vários países que se opõem à vacinação. Surgiram teorias conspiratórias, que veem um conluio entre cientistas, governos e empresas farmacêuticas para encobrir supostos riscos das vacinas.

O que preocupa, além da força de disseminação dessas ideias pela internet, é que muitas delas estão sendo abraçadas por políticos e partidos populistas. Na Itália, o vice-premiê Matteo Salvini, líder do partido direitista Liga, disse no ano passado que, das vacinas obrigatórias, "dez são inúteis e por vezes prejudiciais", o que contraria as diretrizes do seu próprio governo.

Isso tudo tem contribuído para oscilações importantes na cobertura de vacinas em todo o mundo. Em 2017, a OMS alertou que a cobertura de vacinas na Itália estava abaixo da média europeia e nenhuma atingia 95% da população. Nos EUA, onde o sarampo havia sido declarado erradicado na virada do século, várias cidades estão enfrentando surtos da doença. Nas Filipinas, uma epidemia de sarampo matou 70 pessoas em janeiro, depois de a cobertura da vacina ter despencado nos últimos anos, após uma onda de boatos relativos a supostos riscos de uma vacina contra a dengue. Em geral, uma minoria se opõe às vacinas, mas isso basta para manter o vírus em circulação.

Opções irracionais similares têm proliferado em outras questões, do aquecimento global ao Brexit. Em geral, são promovidas por uma mistura de desinformação e desconfiança nas instituições, sejam elas o governo, as universidades, as empresas, a mídia. Políticos e partidos populistas insuflam e se aproveitam desse clima de desconfiança generalizada.

No caso do Brexit, a vitoriosa campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia (UE) manipulou e minimizou o impacto negativo para a economia britânica, numa ofensiva de desinformação. Havia, à época do referendo, em 2016, um quase consenso entre economistas de que o impacto econômico de curto prazo do Brexit seria negativo. E a maioria dos estudos, das principais instituições britânicas, incluindo o Banco da Inglaterra (o BC britânico), apontava para efeitos negativos de mais longo prazo. Tudo isso foi rejeitado pela campanha em favor do Brexit como sendo alarmismo.

Pode-se ser a favor do Brexit por várias razões, como o desejo de autodeterminação ou a aversão a ser governado pela burocracia não eleita da UE. Mas o eleitor tinha o direito de ser bem informado sobre os riscos econômicos, que, como previsto, estão se materializando. A Nissan cancelou na semana passada a produção de um novo modelo de automóvel na unidade do Reino Unido, devido ao risco de o produto ser taxado no mercado da UE. Bancos estão transferindo sede e operações de Londres para países da UE. O resultado é que o Reino Unido, que após a crise de 2008 vinha crescendo acima da média da zona do euro, desde 2016 cresce abaixo.

Do mesmo modo, nesta semana dois ex-presidentes do Fed, Paul Volcker e Alan Greenspan, alertaram para os riscos do déficit fiscal excessivo dos EUA, que atingiu US$ 319 bilhões no primeiro trimestre deste ano fiscal (outubro a dezembro), alta 42% em relação ao mesmo período anterior. O déficit ameaça bater na casa US$ 1 trilhão já neste ano. O aumento foi gerado pelo corte de impostos proposto pelo presidente Donald Trump e aprovado pelo Congresso em 2017, que não foi seguido por um corte de gastos. Pelo contrário. Esse nível de déficit é o maior em tempos de paz e é inédito para um período de crescimento econômico.

A maioria dos economistas e o Escritório de Orçamento do Congresso (CBO) alertaram para o risco de disparada do déficit. Para aprovar o corte de impostos, o governo apresentou projeções de crescimento econômico e de arrecadação irrealistas e que, de fato, não se confirmaram. Confrontado com essa e outras projeções inconvenientes do CBO, Trump costuma dizer que "discorda" delas. Como Salvini desconfia das vacinas. Sem elaborar, sem apresentar contra-argumentos críveis.

Trump e parte do governo brasileiro negam o aquecimento global ou que ele seja causado pela atividade humana, apesar do quase consenso sobre isso na comunidade científica, incluindo agências do governo americano.

Ao anunciar que 2018 foi o quarto ano mais quente, Gavin Schmidt, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais, da Nasa, fez uma defesa do método científico, da razão. "As pessoas perguntam: 'Como sabemos que essa ciência é boa? Podemos confiar nesses modelos [do clima]? São tão complexos'. Essa é a essência da ciência. Você acha que entende como algo funciona, você faz modelos e faz previsões e verifica se elas se realizam. Infelizmente, estamos vendo que elas estão se realizando."

O irracionalismo foi um elemento-chave do Romantismo, tendência filosófica influente no Século 19, anti-intelectual, avessa à razão e ao Iluminismo, que possivelmente contribuiu para a ascensão de ideologias extremistas, como o comunismo e o fascismo, no Século 20. O liberalismo é a expressão econômica do racionalismo. Um movimento irracionalista é tendencialmente antiliberal.

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