terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Literatura do jovem Karl Marx antecipa sua obra econômica

Reunidos no livro ‘Escritos ficcionais’, romance e peça do autor de ‘O capital’ apresentam ideias com ironia e erudição

Ruan de Sousa Gabriel | Segundo Caderno

SÃO PAULO - Em 1837, no aniversário de 60 anos de seu pai, o jovem Karl Marx não sucumbiu ao fetichismo da mercadoria e confeccionou ele próprio um presente para o velho Heinrich: um caderno recheado de suas audácias literárias. Havia um punhado de poemas (incluindo versinhos galantes que ele, então com 19 anos, escrevera para sua futura esposa, Jenny von Westphalen), uma tradução de Ovídio, o primeiro ato de uma peça intitulada “Oulanem” e fragmentos de um romance satírico chamado “Escorpião e Félix”.

Esse caderno só foi descoberto na década de 1920, quando o Instituto Marx-Engels-Lenin, de Moscou, organizava as obras completas dos autores do “Manifesto comunista”. “Escorpião e Félix” e “Oulanem”, que Marx nunca chegou a publicar, compõem o volume “Escritos ficcionais”, lançado pela Boitempo no fim do ano passado.

“Escorpião e Félix” tem capítulos curtose um enredo difícil de apreender — é um romance fragmentado, mas não se sabe se os capítulos faltantes se perderam ou se nem sequer foram escritos. A trama se desenrola aos solavancos e envolve personagens como o alfaiate Merten, seu filho Escorpião, o oficial Félix, a cozinheira casadoura Margarida e o cão Bonifácio — Merten acreditava que o cão era o próprio São Bonifácio, padroeiro dos alemães.

O romance é encharcado de ironia e pródigo em referências bíblicas, literárias e piadas filosóficas — Hegel, que tamanha ascendência teve sobre Marx, é chamado de “anão”. Marx tentou imitar o estilo digressivo e mordaz do irlandês Laurence Sterne (1713-1768), autor de “A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy”, uma das influências de outro galhofeiro, Machado de Assis.

“Oulanem” reúne todos os elementos de uma tragédia romântica: um viajante, uma cidadezinha italiana, um vilão infame (que ofende o mocinho com xingamentos como “moleque” e “bastardo”), a paixão fulminante e irrealizável de um jovem casal e a sugestão de um pacto com o demônio. “Oulanem” é um anagrama de “Emanuel”, um dos nomes bíblicos do messias hebreu, o que rendeu à peça acusações de satanismo. A peça é escrita toda em versos, que são rimados no diálogo dos amantes.

INFLUÊNCIA DE HEGEL
Apesar da ironia, das referências eruditas e das rimas, a ficção de juventude de Marx não é tão reverenciada quanto seus escritos filosóficos.

—São textos sem grande valor literário, mas apresentam sintomas de um procedimento intelectual que Marx vai explicitara o longo de sua obra —diz Carlos Eduardo Berriel, professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp). — Uma das características da literatura é alcançara totalidade a partir da vida cotidiana. A primeira frase de “O capital”, em que Marx diz que a sociedade capitalista aparece como um grande acúmulo de mercadorias, é um sintoma da formação literária dele. Ele não diz o que a sociedade capitalista é, mas como ela aparece ao homem comum.

Algumas características desses primeiros exercícios literários aparecem —e são refinados — na obra filosófica e econômica de Marx, como o gosto pela ironia e pelos trocadilhos, as referências eruditas e o talento para a criação de imagens e metáforas, encontradas, por exemplo, na discussão sobre o caráter “fantasmagórico” da mercadoria desenvolvida no “Capital”.

Em outra carta enviada ao pai, em novembro de 1837, Marx afirmou perceber, em seus exercícios ficcionais, a influência da filosofia e conta de seu crescente interesse por Hegel. Marx acabou deixando a ficção de lado e se engajou em um diálogo com a obra de Hegel que durou avida toda.

— Muitos veem aí uma ruptura, mas eu me filio ao outro time, que enxerga uma continuidade entre a produção literária e a filosófica — afirma o historiador Angelo Segrillo, autor de “Karl Marx: uma biografia dialética”. — Marx não jogou nada fora, mas passou a um outro tipo de atuação intelectual. Isso foi muito comum na carreira dele. Ele passou da literatura à discussão filosófica sobre alienação e depois à economia, sempre em busca da melhor forma de atuação.

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