quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Ribamar Oliveira: Um rebanho (ou fato) de bodes na sala

- Valor Econômico

Minuta que vazou cria regime previdenciário para militares

Há várias versões para esta história, mas o ensinamento é o mesmo. Conto como ouvi pela primeira vez. No seu início, a ex-União Soviética enfrentava grande dificuldade para produzir moradias para todas as pessoas. Então, duas famílias foram alojadas em uma pequena residência. Como o espaço era minúsculo para tanta gente, começaram os protestos, que foram se tornando cada vez mais virulentos.

O comissário do governo responsável pelo programa habitacional decidiu levar um bode e colocá-lo na sala, alegando que era uma decisão superior e que a criatura ficaria ali por pouco tempo. O incômodo das pessoas aumentou consideravelmente, com o cheiro, os excrementos e a imundície do animal. Os protestos se transformaram em ações de rua. Depois de algum tempo, o comissário decidiu retirar o bode da sala. O alívio foi imediato e nunca mais ouviram-se protestos.

Toda vez que o governo encaminha uma proposta legislativa, nós jornalistas procuramos saber, entre outras coisas, qual é "o bode na sala", ou seja, qual a mudança que foi colocada no texto e que depois será retirada para tornar possível um acordo. Já há uma teoria nos bastidores do Congresso Nacional de que a minuta da proposta da reforma da Previdência Social foi vazada nesta semana, intencionalmente, para que o governo apresente outra, que seja mais palatável aos parlamentares e possa, assim, ser aprovada. Seria um "bode" preventivo?

Se esta teoria estiver correta, o "bode" da proposta seria a idade mínima de 65 anos para homens e mulheres requererem aposentadoria. Ninguém negou que a minuta vazada foi redigida pela área econômica. Ao contrário, chegou-se a dizer que essa era a proposta do ministro da Economia, Paulo Guedes, mas que o presidente Jair Bolsonaro era contra. Quem for ingênuo que acredite ser possível um ministro divulgar a sua proposta em oposição ao presidente da República.

Na noite de terça-feira, durante jantar com alguns jornalistas, entre eles a diretora-adjunta do Valor, Claudia Safatle, o ministro Guedes informou que o presidente Bolsonaro analisa duas propostas. Uma com idade mínima de 65 anos para homens e 60 anos para mulheres, com a possibilidade de que as mulheres com filhos possam reduzir a idade de aposentadoria até um certo limite. Outra proposta prevê 62 anos para homens e 57 para mulheres, mas sem regra de transição. Mas deu a entender que a primeira seria a escolhida. Ah, bom, agora os espíritos foram desarmados e é possível fazer um acordo em torno da reforma, pois ela é bem mais amena do que queria o duro Guedes.

Na verdade, a idade mínima de 65 anos para homens e mulheres é apenas um dos "bodes na sala". Pela leitura da proposta da minuta de emenda constitucional que vazou, pode-se dizer que o governo colocou um rebanho (ou fato) de bodes na sala. Foi retomada, por exemplo, a proposta, apresentada em dezembro de 2016 pelo ex-presidente Michel Temer, na PEC 287, de desvincular do salário mínimo os benefícios previdenciários pago aos idosos e aos deficientes.

Se a medida for aprovada, os idosos e deficientes poderão receber benefícios inferiores ao salário mínimo. Os valores seriam estabelecidos por lei. Até que a lei seja aprovada, a minuta que vazou propõe um valor de R$ 1 mil para deficientes, de R$ 550 para o idoso com 55 anos ou mais e de R$ 750 para idoso a partir de 65 anos ou mais. Hoje, o idoso que se aposenta aos 65 anos recebe um salário mínimo, assim como o deficiente.

O ex-presidente Temer foi obrigado a desistir da proposta para tentar fechar um acordo. Ela era, então, um dos "bodes" colocado no texto da PEC 287. Qual o destino que a proposta terá agora? O novo Congresso, bastante renovado nas eleições de outubro de 2018, terá um novo entendimento desta questão, que é uma despesa que não para de crescer? Ou ela continua sendo um "bode" a ser retirado da sala

As pessoas não discutiram, igualmente, a autorização, que está na minuta vazada, para que sejam criadas alíquotas previdenciárias para os militares, inclusive reformados e na reserva remunerada, para custeio do regime próprio de previdência. Ou seja, a proposta atribuída à área econômica institui um regime previdenciário para os militares, contrariando o que já disseram vários oficiais de alta patente, de que a situação deles é inteiramente diferente da dos demais servidores do Estado. É outro "bode" para conseguir aumentar, por exemplo, a atual contribuição de 7,5% que eles fazem? E elevar a idade mínima para a reserva e a reforma?

O texto da minuta determina que a União, Estados e municípios criem contribuições extraordinárias, além da contribuição previdenciária normal, para "equacionamento do déficit atuarial" dos regimes próprios. Seria algo semelhante à regra existente, hoje, para os fundos de pensão de empresas estatais. Quando os gestores desses fundos concluem que as disponibilidades existentes não são suficientes para honrar as aposentadorias contratadas de seus integrantes, fazem uma chamada para que os participantes façam um aporte extra ao fundo. Muitos funcionários aposentados de estatais amargam atualmente essa situação, criada, muitas vezes, por gestão fraudulenta ou inepta de seus dirigentes.

A PEC da área econômica que vazou quer estabelecer o mesmo princípio para os servidores civis e militares, aposentados e pensionistas. O problema é que os déficits atuariais são gigantescos. Estudo de 2016 do economista Marcelo Caetano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estima o déficit atuarial do Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS) apenas dos civis em R$ 1,2 trilhão. O déficit atuarial dos RPPS estaduais é ainda maior, de R$ 2,4 trilhões.

Qual seria o tamanho do aporte extraordinário a ser feito pelos servidores civis, militares e pensionistas, uma vez que o texto da PEC da área econômica não especifica um limite para a contribuição. Este parece ser o maior dos "bodes". Resta saber em troca do quê o governo vai aceitar tirá-lo da sala.

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