quarta-feira, 20 de março de 2019

Cristiano Romero: Capital político: contagem regressiva

- Valor Econômico

Congresso aprova tudo que governos com vontade propõem

Na jovem democracia brasileira, presidentes da República têm pouquíssimo tempo para aprovar no Congresso Nacional mudanças institucionais importantes. A história mostra que, desde 1985, quando se iniciou a Nova República, período que sucedeu o regime militar (1964-1985), o parlamento aprovou quase tudo o que os governos pediram, desde que estes tivessem capital político, liderança, vontade e coragem de promover reformas. O que não se pode é perder tempo: o parlamento ajuda a quem quer ser ajudado.

Na ausência de instituições democráticas sólidas e de partidos fortes, o Congresso não costuma ser obstáculo à revisão de aspectos da vida nacional que, durante décadas, todos julgamos imutáveis, como os monopólios estatais nas áreas de petróleo, telecomunicações e energia. O parlamento aceita, inclusive, medidas impopulares, como o confisco da poupança, o teto de gastos e a contribuição dos aposentados do serviço público para a Previdência.

Primeiro presidente eleito pelo voto direto na Nova República, Fernando Collor mal colocou a faixa presidencial e já propôs ao Congresso o confisco, que irritou a direita e deixou a esquerda perplexa. A medida, radical, foi aprovada, mas não conseguiu o intento de acabar com a inflação crônica. O fracasso custou caro e Collor começou a definhar politicamente, até perder o mandato, em setembro de 1992, após processo de impeachment.

Eleito em 1994 nas asas do bem-sucedido Plano Real, Fernando Henrique Cardoso não levou um ano para aprovar no Congresso o impensável: o fim dos monopólios do Estado brasileiro em áreas vitais da economia. A força da arrancada, assegurada em grande medida ainda pelo sucesso do Real, diminuiu ao longo do primeiro mandato e, aí, já não foi possível aprovar reformas necessárias, como a da Previdência.

Ideologias não dificultam a passagem de projetos importantes. Pesam mais nos temas relacionados aos costumes. A rigor, no Brasil não existe direita nem esquerda. Não há liberais nem muito menos comunistas no espectro político nacional. Não se explica isso apenas com a tese de que somos um povo naturalmente conciliador, sem histórico de revoluções e rupturas ou que tais.

Embora propugne agenda liberalizante na economia, o presidente Jair Bolsonaro não pode ser considerado um liberal, assim como o ex-presidente Lula não era de esquerda. A trajetória política de Lula, aliás, é um exemplo de como é relativa a importância do conceito clássico de direita e esquerda no país.

Lula iniciou sua história política como sindicalista, forjado nos estertores da ditadura, num centro industrial dinâmico da economia brasileira da década de 1970. A região do ABC paulista tinha os melhores empregos da indústria. Operários como Lula, portador de diploma de nível técnico concedido pelo Senai, ganhavam o suficiente para ter casa própria e carro na garagem.

Os efeitos inflacionários da primeira crise do petróleo, em 1973, começaram a arruinar o "milagre econômico" e a balançar a hegemonia do governo militar. Lula, que resistira durante anos à sedução de um irmão para aderir ao comunismo, engajou-se no sindicalismo naquele momento. As ruidosas greves do ABC que vieram nos anos seguintes, além de projetar Lula como uma novidade no cenário político nacional, tornaram-se libelos contra a ditadura e não apenas em defesa de melhores salários.

Com o advento do segundo choque mundial do petróleo, em 1979, a situação econômica do Brasil piorou de forma significativa. Os militares tomaram consciência de que o ocaso se aproximava e, por isso, tomaram várias medidas para "abrandar" o regime ditatorial e preparar sua saída do poder de forma pacífica - o marco inicial fora a extinção, em dezembro de 1978, do Ato Institucional número 5 (AI-5) e, em seguida, vieram o fim da censura prévia e a Lei de Anistia, que, numa solução bem brasileira, perdoou a todos, inclusive, os assassinos a serviço do Estado e da guerrilha, além de torturadores e exilados.

Lula percebeu que seu papel como sindicalista terminara ali, no ABC, e que a política era o seu destino. Acreditou desde o início que, numa democracia de massas como a que se prenunciava para o Brasil, seria possível disputar o poder mesmo não sendo "doutor". Seu modelo era o dos Estados Unidos. Ele constatou que, quando os generais deixassem Brasília, o clamor da população seria por um governo de esquerda. E assim ele fundou o PT, acompanhado de intelectuais renomados (Sérgio Buarque de Holanda, Mário Pedrosa, Antônio Cândido etc), integrantes da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação, remanescentes da guerrilha que lutou contra a ditadura e de sindicalistas.

Ao chegar ao poder, em 2003, Lula surpreendeu ao abandonar inúmeros preceitos da esquerda. Foi muito cobrado por não romper com a herança de FHC na área econômica e por encaminhar ao Congresso proposta de mudança da Constituição para unificar os regimes de aposentadoria de funcionários públicos e trabalhadores do setor privado. Acusado em livro pelo economista Nelson Barbosa - prócer, durante o governo Dilma, da malfadada Nova Matriz Econômica, depois de ocupar vários cargos nos dois mandatos de Lula - de ter adotado agenda "neoliberal", o então presidente usou a esquerda para chegar ao poder, mas governou longe dela.

Quando o escândalo do mensalão o enfraqueceu politicamente, em 2005, Lula fez aceno aos sindicalistas e à própria esquerda para resistir a um possível processo de impeachment, mas, reeleito em 2006, manteve o "neoliberal" Henrique Meirelles no comando do Banco Central até o fim do segundo mandato e o tripé de política econômica - metas para inflação, geração de superávits primários nas contas públicas e câmbio flutuante - que herdou do governo anterior e que foi o responsável por estabilizar a economia. Para manter um certo verniz esquerdista, permitiu que Dilma Rousseff, sua principal ministra, fizesse algumas loucuras, possíveis apenas em períodos de bonança, como trocar o regime de exploração do petróleo de concessão para partilha e usar a crise mundial de 2008 como justificativa para exponenciar os gastos públicos.

O Psol, nascido de uma costela do PT por discordar da proposta de Lula para a Previdência, por definição não pode ser considerado um partido de esquerda. Como pode ser de esquerda uma legenda que defende os "direitos" de uma minoria privilegiada? Não faz o menor sentido.

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