sexta-feira, 1 de março de 2019

Maria Cristina Fernandes: Ambiguidades dos militares

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

As eleições diretas para presidente da República permaneceram interditadas no Brasil durante quase três décadas porque os militares acreditavam que os brasileiros não sabiam votar. Permanecem com a mesma visão sobre seus compatriotas, ainda que tenham voltado ao poder, 30 anos depois, desta vez, em grande parte, com o aval da maioria.

A mais abrangente pesquisa já realizada com militares, prestes a ser publicada em livro, "Para Pensar o Exército Brasileiro no Século XXI" (Eduardo Raposo, Maria Alice Rezende de Carvalho e Sarita Schaffel, PUC-Rio), detectou que esta é a percepção predominante entre militares de todas as patentes. O baixo nível educacional da população e a corrupção dos políticos somaram quase 90% das respostas quando o questionário elaborado pelos autores lhes apresentou uma cartela de alternativas para os fatores mais prejudiciais à democracia no Brasil.

As outras opções sugeriam que o jogo democrático poderia ser comprometido pela concentração de poder no Executivo, pouco permeável à pressão ou controle dos eleitores, ou a incompetência dos governantes. Levantavam hipóteses como a falta de organização política do povo e de tradição partidária, reveladores da fragilidade da cultura política. Propunham ainda o corporativismo e o clientelismo, sinais da captura do Estado por interesses encastelados. E, finalmente, a pobreza e a desigualdade social, sinais da baixa eficácia das instituições democráticas.

Todas essas alternativas, no entanto, tiveram adesão residual. Os militares, de aspirantes a generais, resolveram concentrar as explicações na inabilitação dos representados e nos vícios de seus representantes. Quanto mais alta a patente, maior a adesão ao binômio "falta de educação" e "corrupção" para explicar os males da democracia nacional. Entre generais de Exército, topo da carreira, 100% subscreveram a tese de que eleitor e eleito são inaptos.

A pesquisa precede a chegada ao poder do presidente Jair Bolsonaro e de seus oito ministros militares, mas é o que de mais próximo existe sobre os valores da corporação que voltou a mandar no país. Ampliou, em número de entrevistados e em temas abordados, a pesquisa, também publicada pela PUC-Rio, "A Construção da Identidade do Oficial do Exército Brasileiro" (Valor, 04/01/2019).

Fruto de uma parceria entre os ministérios da Defesa e da Educação e a PUC do Rio, a iniciativa se destinava, originalmente, a aproximar as Forças Armadas da vida democrática numa época de desinteresse generalizado pela temática militar. O pressuposto de que a apatia da opinião pública em relação às questões militares era um obstáculo à modernização da corporação havia sido incorporado à Estratégia Nacional de Defesa, aprovado em 2008.

Uma década depois, os militares se recomporiam com o ex-capitão rebelde, Jair Bolsonaro. De carona em sua popularidade, as questões militares se imporiam à agenda da nação para derrotar aqueles que, do centro à esquerda, haviam buscado reformular sua incorporação à agenda democrática pisando em dois vespeiros, a retirada de prerrogativas (MP 2215 sob FHC) e a Comissão da Verdade (sob Dilma Rousseff).

Às vésperas da sucessão presidencial de 2014 foi distribuído um questionário com 70 perguntas para mais de 20 mil oficiais, a grande maioria (93%) de carreira. No ano em que a pesquisa foi a campo, apenas o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, entre os militares do primeiro escalão, estavam na ativa. Os pesquisadores receberam 2.726 questionários de volta. Os resultados levaram dois anos para ser tabulados e analisados e agora chegam ao público numa edição limitada a pesquisadores.

Se tudo depende do grau de instrução do eleitor e da punição dos corruptos, como sugerem as respostas colhidas, um povo que se organiza por uma mediação de interesses que favoreça a redistribuição de poder e renda flerta com a baderna. Esta percepção corrobora a disposição do presidente da República de tipificar ações de movimentos sociais, a exemplo das invasões de terras, como ato terrorista.

Essa perspectiva, no entanto, só parece ter sido revelada com a iminência do poder. Na época da pesquisa, a desigualdade social foi pouco valorada como fator de deslegitimação da democracia. Sete em cada dez oficiais que responderam à pesquisa não veem como o apartheid social em que vive o país poderia levar à emergência de movimentos extremistas. Os generais de exército aparecem aqui, mais uma vez, como um bloco uníssono, sem uma única discordância: todos descreem do poder de erosão da disparidade de renda.

Os militares mantêm, em grande parte, seus valores mais intocados do que outras corporações porque têm mais controle sobre a porta de entrada dos oficiais - a Academia Militar de Agulhas Negras (Aman) é o único caminho até o generalato - e também porque a estrutura da carreira favorece a convivência entre seus pares e suas famílias mais do que qualquer outro corpo de servidores do Estado.

O perfil colhido pelos pesquisadores da PUC-Rio, no entanto, mostra que, por outro lado, uma boa parte dos oficiais têm pais inseridos no mercado de trabalho formal e irmãos e cônjuges no meio universitário. É uma inserção capaz de reproduzir, na corporação, uma palheta mais aproximada das cores da população brasileira.

O Exército que vencera Guerra do Paraguai com a incorporação de muitos negros e mulatos forros passou por um processo de 'branqueamento' ao longo da República que se mantém até hoje. Enquanto o último IBGE/PNAD (2014) identifica uma minoria de brancos no país (45,5%), no Exército ainda são larga maioria (66,4%).

No perfil religioso, ao contrário, a mudança foi mais acelerada do que aquela que se deu no conjunto da população. Metade dos respondentes é de católicos, média inferior à da população (64%). Em segundo lugar, ao contrário do que acontece entre os civis, vêm os kardecistas e não os evangélicos. Os generais são mais católicos do que seus subordinados.

Por mais que a carreira absorva contingentes de fora das famílias da caserna, são os filhos de militares que mais frequentemente atingem o topo da corporação. Chega a 80%, entre generais, a cota que seguiu a carreira dos pais. A proporção cai pela metade entre os aspirantes.

O perfil colhido sugere antes uma aproximação entre os valores militares e a classe média brasileira do que a popularização da corporação. A proximidade explica, em grande parte, o êxito da carona dos militares na candidatura Jair Bolsonaro e fundamenta, ainda que parcialmente, a tese de um dos autores do livro, o professor Eduardo de Vasconcellos Raposo, sobre o fenômeno - a da confluência entre os valores da maioria eleitoral e aqueles predominantes no meio militar. Bolsonaro não foi eleito por ser ex-capitão, mas por ter sido identificado como algoz da corrupção, da violência e do PT. A pesquisa mostra que a identidade dos militares com os valores de um segmento expressivo da população corrobora a legitimação do seu poder crescente sobre o governo.

Mais de 70% daqueles que responderam à pesquisa são favoráveis à presença de mulheres nos postos de comando da carreira e um percentual ainda maior é favorável a que seja das mulheres, e não do Estado, a decisão de interrupção da gravidez. Maioria igualmente larga se manifestou favoravelmente à presença de professores homossexuais em escolas públicas. Em contrapartida, a existência de livros sobre homossexualismo nas bibliotecas públicas angariou menos apoio. A maioria, ainda que estreita (51,8%), se disse favorável à exclusão.

Essa identidade ambígua é explorada com mais habilidade pelo vice-presidente Hamilton Mourão do que pelo titular do cargo, mais afeito à cartilha do ideólogo Olavo de Carvalho. Na ambivalência dos valores da corporação, ainda cabe um verniz de contemporaneidade em relação à questão ambiental, surpreendente face ao histórico de embates com as organizações não governamentais verdes. Indagados sobre a necessidade de controles ecológicos limitados para favorecer o crescimento econômico, os militares também foram francamente contrários (68,5%). Rechaçaram, por uma maioria ainda mais larga (79%), a liberação de armamentos nucleares.

É igualmente ambígua a percepção de que os brasileiros, inaptos para o voto, continuam a escolher corruptos. Os militares acham que os partidos valem mais do que pesam, mas enaltecem o Parlamento. Em sua valoração das instituições, o Congresso Nacional é a único a ter praticamente as mesmas notas quando classificam a influência que, de fato, exercem (82%) e aquela que deveriam exercer (78%). Com os partidos, a relação entre a influência real e aquela tida por ideal é de quase o dobro.

A julgar pela tabela das instituições, ainda se deve esperar grandes embates entre os ministros militares e a equipe econômica liderada pelo liberal Paulo Guedes. Os militares acham que as multinacionais, os bancos e os organismos financeiros internacionais têm um poder múltiplas vezes maior do que deveriam ter. É a maior desproporção de toda a tabela de valoração das instituições. Só se comparam, com os sinais trocados, com os próprios militares. Indagados sobre a influência que, de fato, exercem, 2,9% dos entrevistados disseram "muita". Sobre a influência que deveriam exercer, 35% indicaram que deveria ser muito grande, 44% responderam que deveria ser pequena e, um quinto, tascou "nenhuma".

A diversidade de opiniões dos militares sobre seu próprio poder se deu no início da escalada de turbulências do país que acabariam desaguando na eleição de Jair Bolsonaro. Mostra que, a despeito da camisa de força da hierarquia, não se trata de uma corporação uníssona ou homogênea. É um retrato mais consonante com a política que voltaram a exercer do que com o papel que a Constituição lhes reserva.

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