quarta-feira, 17 de abril de 2019

A grande mágoa de Lobato

Cartas de Monteiro Lobato mostram que autor era rejeitado pela elite de sua cidade natal

Pedro Venceslau / O Estado de S.Paulo / Caderno 2

Desde que a obra de Monteiro Lobato caiu em domínio público, no dia 1.° de janeiro, as editoras abriram uma corrida contra o tempo para colocar na praça novos livros e produtos sobre a obra do escritor, que morreu em 1948, aos 66 anos.

Mas foi um pesquisador de Taubaté que conseguiu ter acesso ao maior conjunto inédito de textos lobatianos: 47 cartas escritas por Lobato ao poeta Cesídio Ambrogi entre 1918 e 1948, além de 15 cartas trocadas com outros destinatários e artigos de jornais locais da cidade que não constam das antologias.

Esse pequeno tesouro foi entregue ao pesquisador Pedro Rubim em 2001 pela viúva de Ambrogi, Lígia Fumagally Ambrogi, que morreu em 2012. Ele esperou 18 anos (até a obra deixar de ser patrimônio dos herdeiros) para organizar o material em plataforma multimídia chamada Almanaque Urupês, que será lançada na quinta, 18, também dia do nascimento de Monteiro Lobato, em 1882.

A troca de cartas revela a mágoa que o autor do Sítio do Picapau Amarelo sentia da elite de sua cidade natal, que passou a rejeitar as suas obras devido às críticas de Lobato ao comportamento dos barões do Vale do Paraíba.

O ápice da crise entre Taubaté e seu filho mais ilustre foi uma moção da Câmara dos Vereadores do dia 17 de agosto de 1922 que classificou a obra do escritor como derrotista, oportunista e recomendou que os livros de Lobato fossem “banidos” de circulação na cidade.

A ira dos parlamentares taubateanos, que representavam a elite econômica local, foi despertada pelo livro Cidades Mortas, que retrata em linguagem ferina a decadência do Vale do Paraíba, em decorrência da abolição da escravatura.

“Pelas longas linhas das Cidades Mortas, Monteiro Lobato, longe de fazer penetrar seiva nova, forte e revigorante, nas veias dos patrícios, que em vida latente apegam-se aos meios favoráveis, de ocasião, para levantar a glória, o progresso do seu torrão, procura vencê-los traçando painéis de inacreditável futuro de morte para suas esperanças, de desengano para seus esforços”, disse a ata da sessão, que foi obtida por Pedro Rubim.

“Lobato foi a primeira celebridade de Taubaté. Depois de alcançar a glória literária após publicar um artigo no Estadão ele passou a criticar a elite vale-paraibana pelos problemas na roça e pelo fato de o caipira, segundo ele, ser um indolente”, disse o pesquisador.

Selo. A troca de correspondências entre Lobato e Ambrogi começou em 1918, quando o poeta de Taubaté se tornou um ferrenho “lobatista”.

As primeiras cartas foram enviadas após Ambrogi ser convidado pelo escritor a publicar seu primeiro livro pela editora que Lobato comprou, dando início a uma longa amizade.

O escritor conseguiu o dinheiro após vender a fazenda herdada por seu avô, José Francisco Monteiro, mais conhecido como Visconde de Tremembé, um dos homens mais ricos da região. Em uma das cartas recebidas por Cesídio, Lobato fala sobre sua maior criação, o Sítio do Picapau Amarelo. “Duma coisa eu tenho certeza: a originalidade da ideia do Sítio. Creio mesmo que é a primeira vez na vida do Taubaté que apareceu uma ideia própria, não copiada de ninguém. E se soubermos fazer propaganda da coisa depois de construída, de modo que os sítios se espalhem, Taubaté torna-se-á muito mais sonoramente conhecido do que o é efeito daquela ‘piadinha’: Cavalo pangaré, Mulher que mija em pé, Gente de Taubaté. Domine libera-me.”

Em outra correspondência, Monteiro Lobato apresenta uma opinião polêmica, que certamente causaria reações nos dias atuais.

“Eu se fosse estado novo, fazia uma lei acabando com a liberdade de procriar. Para ter filho era necessário um atestado de habilitação e uma permissão especial. A gente feia ficava proibida de reproduzir-se. Outros teriam licença para um filho só. Outros, dois e três. E alguns teriam licença sem limites. Você, meu caro, entrava para este grupo. E não precisava produzir filhos só em casa – teria licença de fazer roças grandes, por montes e vales”, escreveu Lobato ao amigo em 1943.

Café. Formado em direito no Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, o escritor deixou sua cidade natal em 1907, após ser nomeado promotor no município de Areias.

Segundo Pedro Rubim, foi nessa época que ele enviou ao Estadão uma carta ao leitor que agradou tanto que virou artigo assinado.

“O pai e a mãe de Lobato haviam morrido e ele foi treinado para ser herdeiro do avô, que morreu em 1911. Ele se tornou fazendeiro por um tempo, mas não se adaptou à ideia. Com a publicação no Estadão, Lobato ganhou projeção nacional”, relatou o pesquisador taubateano.

Monteiro Lobato, lembra Rubim, foi o autor do primeiro best-seller brasileiro, Urupês. A obra nasceu da ira do autor contra os caipiras que seriam responsáveis, segundo ele, pelo constante incêndio nos campos, através dos quais limpam os terrenos, as famosas queimadas, cometidas em demasia e, portanto, prejudiciais para um proprietário de terras.

Vermelho. Já consagrado, ele lançou o livro de Ambrogi e sugeriu o nome da obra: As Moreninhas. “Cesídio queria dar o nome de Castalidas Sertanejas, mas o Lobato vetou. Disse que esse nome não venderia nada e optou por As Moreninhas afirmando que as pessoas comprariam o livro para saber das tais moreninhas. A viúva dele contava essa história”, afirmou Pedro Rubim. O livro reuniu 32 poesias roceiras. Depois disso, Ambrogi, que pregava o comunismo cristão, escreveu seu segundo livro, chamado Poemas Atômicos.

Tratava-se de uma reflexão sobre justiça social. A obra, porém, não foi acolhida inicialmente por Lobato, que sugeriu que ao amigo que procurasse Luis Carlos Prestes, grande líder do PCdoB. A resposta veio em uma carta com um timbre do partido.

“Seus poemas bem mostram a preocupação em estar ao lado do povo, embora não concorde com a ideia final de encontrar a solução para os problemas da miséria no ‘retorno ao cristianismo’.” Lobato então decidiu publicar o livro, mas o rebatizou como Poemas Vermelhos.

Confira alguns trechos de cartas:


Outrora o pensamento e a sátira dispunham das asas dos jornais e livros, e dos teatros e das conferências públicas. Os inefáveis patifes que nos governam tomaram para seu exclusivo essas velhas asas – e só ficou para o pensamento livre a asinha frágil e cara das copias mimeografadas. Periodicamente recebo aqui coisas anônimas que são o débil protesto de um povo asfixiado, talvez o ultimo, porque as ditaduras muito prolongadas acabam mergulhando o povo naquele absoluto servilismo de alma que destruiu o velho Oriente.
23/4/1944

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Fico ciente de que o Sítio vai emergindo da terra e que os big shots da finança local também apoiam a idéia. Duma coisa eu tenho certeza: a originalidade da idéia. Creio mesmo que é a primeira vez na vida do Taubaté que apareceu uma idéia própria, não copiada de ninguém. E se soubermos fazer propaganda da coisa depois de construída, de modo que os sítios se espalhem, Taubaté torna-se – á muito mais sonoramente conhecido do que o é efeito daquela “piadinha”:
Cavalo pangaré
Mulher que mija em pé
Gente de Taubaté
Domine libera-me.
Março de 1943
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“A nossa Ordem Social é uma coisa tão suja e sórdida que o meu consolo hoje é um só: saber que vou morrer e afastar-me ab aeternitate da sujeira. Quando meus filhos morreram senti uma grande satisfação íntima que nem aqui em casa compreenderam. É que os vi livres da Sordície Reinante. E invejo-os, e anseio para que também me chegue a hora de espapar ao imenso campo de concentração da Estupidez Dominante, aqui e em toda parte. Mas mesmo quem chega a esta infinita descrença no Homo, não pode furtar-se ao prazer do sonho – à ilusão do Quem Sabe? E o surto dum Sítio aí, como vocês imaginam, com possibilidade de reprodução em outros pontos desta terra, me põe um pouco de luz cor de rosa ou azul na alma”.
20/12/1943
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Texto da Ata: Senhor Presidente
Senhores Vereadores.
Idealista, com remates de ironia na sua crítica injusta, desvairado no desejo de galgar as posições elevadas da literatura, sonhando desmedidamente com recanto de consagração na Academia de Letras do Brasil, jovem, talentoso, mas soberbo, numa procriação admirável de livros, livretos e artigos, pensando penetrar no âmago adolescente da porção que lê, que medita pouco, aparece-nos um filho desta terra dizendo que “a nossa gente não vinga prosperar senão onde uma vitalidade prodigiosa poreja do húmus negro da terra virgem como o fumegar quente da rês carneada de fresco”.

E no seu portento de pena traçando com nervosismo o histórico do que pensa ser, mas do que real não é, diz que “na depressão profunda que aperreia o Norte, ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito”.

E num quadro semi-dantesco, numa descrição pelo belo horroroso do “bafio da morte” o descobridor fantasista enquadra a vida de uma cidade morta do Norte do Estado de São Paulo.

Não contente com a narração, que denota desgosto, que transpira mau humor, que nos faz crer um desterro de alma motivado pelos desregramentos de uma nobreza falida de que faz parte seu nome, o jovem escritor esvoaça, pretendendo se apossar da alma do leitor, numa concordância de pensar.

E pelas longas linhas das “Cidades Mortas”, Monteiro Lobato, longe de fazer penetrar seiva nova, forte e revigorante, nas veias dos patrícios, que em vida latente apegam-se aos meios favoráveis, de ocasião, para levantar a glória, o progresso do seu torrão, procura vencê-los traçando painéis de inacreditável futuro de morte para suas esperanças, de desengano para seus esforços.

A pena do cientista, do verdadeiro literato deve, meus senhores, procurar a fantasia, que no cadinho da experiência possa tornar-se uma realidade de vulto, que fortaleça os braços, a alma da humanidade para entrada definitiva na senda do progresso.

A pena frágil dos que sonham, dos que não tem a responsabilidade, porque anos de experiência não possuem, deve ser afastada do meio que se ergue para empreendimentos de valor.

A pena frágil é inimiga do patriotismo porque diz o que não deve, porque estraçalha com a vontade, com a formação do caráter.

A tendência literária dos “néos” é para o descrédito dos lugares donde partiram. “Urupês”, “Idéias de Jeca”, “Cidades Mortas”, do nosso conterrâneo, “Bugrinha” última dádiva do talentoso baiano Afrânio Peixoto e mais obras talhadas nos moldes do editor Lobato & Cia , trazem atestado mudo de uma grandeza morta, afastam as forças em evolução, matam desejos de cérebros que idealizam. Os arroubos de eloqüência levam muitas vezes à crítica acerba um povo - que pode ser grande.

Miguel Pereira, longe de mal querer a sua pátria, com a célebre frase “O Brasil é um vasto hospital”, fez com que o estrangeiro, de nossa gente, fizesse o mais ingrato juízo.

E por isso, colegas, os temperamentos fogosos, sem lógica, trazem os mais difíceis dias para uma nação, ou pedaço de terra idolatrada. Os rançosos preconceitos políticos, inaceitáveis com o progresso crescente hodierno, tão fatais como os literatos ligeiros, de produção remuneradora, devem ser banidos do nosso meio, afastados de vez dos olhos dos jovens que procuram as delícias da novidade de um livro novo. As crenças políticas bolorentas, retrógradas, devem ficar como simples lembranças de arcaicos tempos.

Todos os meios possíveis devem ser lembrados para levantamento das forças de nossa Taubaté, para que escape da lista das cidades mortas.

Taubaté, desvencilhado das peias conservadoras, deixando correr pelas suas veias o soro poderoso da mocidade moderna poderá apossar-se de novo do seu lugar de destaque no equilíbrio financeiro e intelectual de seu Estado, e, quiçá, poderá, em não remoto dia, possuir um dos bastões de comando das suas forças.

Nada é impossível quando existe esperança fundada.

O pleito de maio reformou a representação do Estado e levou de nossa terra para uma das Câmaras, um moço cheio de esperanças, de vontade, facilitando também o aparecimento de forças jovens, nativistas, que poderão desmentir os vaticínios da literatura desejosa de aplausos.

Taubaté, agregando em torno das forças novas elementos de valor, correrá mais rapidamente pela senda do progresso já encetado.

E, senhores, sentimos já o aparecimento voluntarioso de força nova. Modificam-se as velhas tradições, fecham-se os estabelecimentos que ainda guardam vestígios de autocracia, de absolutismo, e surgem os novos empreendimentos, remodelam-se os arcaicos métodos de ensino, traçam-se novos embelezamentos, ficam consagrados na arte os heróis da nossa terra, formam-se novas fontes de indústria, higienizam-se os bairros, alteram-se as condições de abastecimento de água da cidade, tudo com o fim patriótico de fazer de nossa terra a urbe admirada, centro de vida de manifesto progresso.

E, meus senhores, completando o já alevantado nível intelectual da nossa sociedade, floresce agora uma nova escola, que legará instrução prática e proveitosa para o futuro.

Um punhado de esforçados professores, possuído da mesma seiva fortalecedora do nosso progresso, neste ano do centenário da nossa independência, tomando como patrono uma das mais legítimas esperanças de nosso meio, acaba de fundar um centro superior de instrução, a Escola de Comércio “César Costa”. É, meus colegas, mais um desmentido ao marasmo de que dizem estarmos possuídos. É a realidade, isto é, a pujança de nossa força expressa com a verdade do fato. E para que esse novo foco intelectual progrida, venho pedir a proteção de meus colegas, nunca falha, sempre eficaz.

Venho apresentar dois projetos de impulso à novel instituição, venho preparar o início de trabalho do nosso representante na Câmara Estadual, que fará tudo quanto puder, pela consolidação dos alicerces da Escola de Comércio de Taubaté.

A melhor herança, o melhor legado da política aos vindouros é a instrução.

Certo do que vai pela consciência dos meus colegas, termino pedindo que se interessem pela instituição fundada e por tudo quanto o vigor do pensamento sensato de nossos dias possa trazer de progresso para nossa terra. Tenho dito.

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Outrora o pensamento e a sátira dispunham das asas dos jornais e livros, e dos teatros e das conferências públicas. Os inefáveis patifes que nos governam tomaram para seu exclusivo essas velhas asas – e só ficou para o pensamento livre a asinha frágil e cara das copias mimeografadas. Periodicamente recebo aqui coisas anônimas que são o débil protesto de um povo asfixiado, talvez o ultimo, porque as ditaduras muito prolongadas acabam mergulhando o povo naquele absoluto servilismo de alma que destruiu o velho Oriente.
23/4/1944

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