sexta-feira, 19 de abril de 2019

As crises da cultura

Setor da cultura entra em alerta, com corte em orçamento e revisão na Lei Rouanet

Por Ana Paula Sousa | Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

SÃO PAULO - Foi o historiador britânico Edward P. Thompson, nome-chave dentro da tradição dos estudos culturais na Inglaterra, quem disse que uma análise a respeito de cultura deve incluir a interação dialética entre cultura e algo que não é cultura. Por quê? Porque a cultura e os embates a seu redor sempre dizem respeito ao todo social. Esse pensamento é um bom ponto de partida para se tentar compreender o que se está vivenciando neste momento no Brasil.

À extinção do Ministério da Cultura (MinC), logo na largada do governo de Jair Bolsonaro (PSL), seguiu-se uma série de episódios que chama atenção de produtores e artistas e mobiliza parte da sociedade. A cultura, neste início de 2019, volta à pauta colada à palavra crise e pontuada pela complexidade das questões que a cercam.

O primeiro susto, dentro do setor, veio com o anúncio da revisão do patrocínio de estatais - como Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e Correios - a projetos culturais. Esse conjunto de empresas serviu, na primeira década dos anos 2000, como esteio financeiro para o setor no Brasil. Em 2010, os cinco maiores investidores via Lei Rouanet foram Petrobras, Vale, Banco do Brasil, BNDES e Eletrobras. Em 2018, apenas BB e BNDES ainda figuravam na lista dos 20 maiores patrocinadores. No caso da Petrobras, especificamente, o corte, agora radicalizado, vinha acontecendo ano após ano, desde a crise da petrolífera. Enquanto em 2006 a Petrobras injetou R$ 226 milhões na cultura, no ano passado foram R$ 6,3 milhões.

A segunda fonte de inquietação é a Instrução Normativa que está sendo finalizada em Brasília e que deve alterar a Lei Rouanet. A principal mudança técnica em discussão diz respeito à criação de um teto de investimentos no valor de R$ 1 milhão. Estariam isentos desse limite os planos anuais, que respondem pela manutenção de instituições culturais perenes, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e as atividades ligadas ao patrimônio cultural brasileiro. Se confirmadas essas medidas, os principais atingidos devem ser os produtores de grandes musicais. São eles (ver infográfico), afinal, ao lado das grandes instituições culturais, que devem figurar como exceção ao teto, os maiores captadores de recursos.

O cenário ficou mais nebuloso com os cortes de gastos da máquina pública por governadores recém-eleitos, que deixaram em suspenso algumas das atividades apoiadas pelo poder público em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo - só para citar os Estados mais ricos. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), no entanto, voltou atrás na decisão de pôr fim ao Projeto Guri e prometeu deixar a Secretaria de Cultura e Economia Criativa fora do contingenciamento anunciado.

Paralelamente, o setor audiovisual, fomentado, regulado e fiscalizado pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), se viu, no fim do mês passado, colocado numa crise deflagrada por um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) que condiciona a assinatura de novos contratos a uma melhoria no sistema de prestação de contas da agência. A partir de uma auditoria feita pelo Tribunal em 2017, a fiscalização da Ancine foi reputada como ineficaz e potencialmente danosa aos cofres públicos. O Tribunal contesta a metodologia adotada pela Ancine em 2015, que analisa os projetos concretizados por amostragem, e cobra a solução para um passivo de cerca de 2 mil prestações de contas não avaliadas.

"Temos um plano de ação em execução. O desafio é demonstrar, politicamente, a relevância da atividade e nossa capacidade de continuar operando de acordo com as determinações do TCU", afirma Christian Castro, diretor-presidente da Ancine. Apesar de ser difícil enfrentar o enorme passivo de prestações de contas, observa ele, é possível colocar a agência no eixo. No entanto, aponta outro problema. "Quando a gente mexe em questões de controle, cria uma instabilidade. Ou seja, o maior risco que temos é político", diz.

Castro considera que os últimos acontecimentos na área cultural guardam muitas diferenças entre si, mas que, não por acaso, estão ocorrendo ao mesmo tempo. "O Estado passa por uma necessidade de ajuste fiscal, e a cultura se vê colocada no meio de um debate que é, sobretudo, econômico", diz.

Eduardo Saron, que dirige o Itaú Cultural e coordena as ações de patrocínio do Itaú, que representa hoje o que a Petrobras representou uma década atrás, vê uma ligação entre esses diferentes episódios. "Acho que tudo isso nos faz pensar sobre duas coisas. A primeira delas é que ou a cultura constrói métricas que sejam aferíveis e provem sua importância não só para o setor criativo, mas para a economia e para a educação, ou vamos continuar pregando para convertidos. A cultura precisa ser mensurável", afirma. "Um outro paradigma que precisa ser superado é o de que o Estado é o único responsável pela existência da cultura. O eixo determinante para a sobrevivência das atividades culturais é a multiplicidade de recursos."

O diretor-presidente da Ancine frisa que outra particularidade da crise no audiovisual é que se vive, neste momento, uma disputa por uma vaga na diretoria colegiada da agência: "E essa vaga, pelo poder do voto, vai definir a política da agência nos próximos anos". Castro defende que este é o momento de se afirmar a importância econômica do setor audiovisual. Mas, se os recursos movimentados e os empregos gerados pelo cinema e pelas séries de TV pesam a favor, o fato de o setor não ter conseguido atrair um volume significativo de investimentos privados para o negócio pesa contra.

Essa ausência de contrapartida privada para os investimentos públicos é um problema que se estende também para a Lei Rouanet. A lei do mecenato entrega às empresas a decisão de onde aplicar o dinheiro. Os projetos, depois de uma avaliação técnica feita pelo governo, são autorizados a ir ao mercado tentar captar recursos. O mecanismo, em vigor desde 1991, permite que empresas e pessoas físicas invistam parte do imposto de renda devido em projetos cultuais. As empresas podem aplicar até 4% do IR a pagar na cultura; as pessoas físicas, até 6%. Na forma mais comum de uso da lei, o Artigo 18, o patrocinador pode abater 100% do valor investido em projetos culturais. E é aí que começam ruídos - que antecedem, e muito, a chegada de Bolsonaro ao Planalto.

De acordo com o estudo Impactos Econômicos da Lei Rouanet, feito pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em parceria com o Ministério da Cultura, em 2018, cada R$ 1 captado e executado por projetos da Lei Rouanet movimenta R$ 1,59 na economia local. A análise da interligação setorial da economia por meio da matriz de insumo-produto demonstra ainda que o setor de cultura tem impacto em 68 diferentes atividades econômicas - aí incluídos os setores de alimentos, bebidas, turismo e transporte.

"A lei é polêmica. Até um ministro inglês, que esteve no Brasil anos atrás, disse que, no Reino Unido, ela seria 'unthinkable' [impensável]. Essa lei foi adulterada durante o governo FHC, ao prever os 100% de isenção fiscal", diz Carlos Augusto Calil, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo. "A questão é que toda mudança na lei vira uma grande confusão. Sempre. Porque a cultura brasileira está viciada na dependência exclusiva do Estado, e o Estado não tem sequer a institucionalidade necessária para isso. Com a lei, privatizou-se o lucro e socializou-se o prejuízo. Estamos vivendo o esgotamento de um modelo."

O ponto de vista de Calil é controverso. Um dos principais argumentos a favor da lei é que o valor mobilizado pelo mecanismo federal é mínimo, quando comparado a outros setores da economia. "Essa polêmica é infundada. A indústria de refrigerante recebe pelo menos R$ 600 milhões em incentivos industriais no Brasil. A cultura, além de ter incentivos muito menores que os industriais, tem um retorno grande", diz Ricardo Piquet, diretor-presidente do Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), que administra o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, e o Paço do Frevo, no Recife. "Outro problema é que, cada vez que se questionam os incentivos, os patrocinadores recuam. Além disso, as manifestações contra as empresas que estão retirando seus apoios podem, em alguma medida, dificultar futuras negociações."

Hoje, metade do orçamento do Museu do Amanhã é composta por recursos da Lei Rouanet. Quando o espaço foi idealizado, em 2015, a Prefeitura do Rio havia se comprometido a bancar 50% dos custos. No primeiro ano de existência, 2016, a instituição recebeu R$ 16 milhões do município. Em 2017, o prefeito Marcelo Crivella (PR) cortou a verba para R$ 12 milhões; em 2018, para R$ 4 milhões. Neste ano, o museu receberá, da prefeitura, R$ 2 milhões. No ano passado, o orçamento de R$ 36 milhões foi completado por meio de doações, eventos e locações de espaço. "A crise financeira do Estado deixa a cultura numa situação delicada", diz Piquet. A secretária municipal de Cultura do Rio, Mariana Ribas, não atendeu ao pedido de entrevistas por motivo de viagem.

Os sinais são de que o setor cultural caminha para a periferia das prioridades de gestores públicos. O documento Caminho da Prosperidade, programa de governo de Bolsonaro, não traz referência à cultura. Uma busca pela palavra, no texto, resulta em único achado: a expressão "marxismo cultural". Ao silêncio no programa contrapôs-se, na fala do presidente, sobretudo durante a campanha eleitoral, um ataque direto a artistas que ele reputa "cooptados" pelas supostas benesses da Lei Rouanet. Ao mesmo tempo, dissipou-se a ideia de que o setor abriga uma minoria de privilegiados e de que é preciso pôr fim à "mamata" da Rouanet. Procurado, o secretário especial de Cultura do governo federal, Henrique Medeiros Pires, não atendeu ao pedido de entrevista para esta reportagem.

Em São Paulo, o governador João Doria, mesmo tendo voltado atrás nos cortes da área, salientou o lugar que a cultura ocupa em seu mapa de prioridades: "Governar é estabelecer prioridades, ter capacidade de gestão e coragem de fazer as coisas. Deixo claro que as prioridades da minha gestão são educação, saúde, habitação, segurança pública e assistência social".

Sérgio Sá Leitão, secretário estadual de Cultura de São Paulo, considera, porém, equivocado o estabelecimento de uma relação direta entre governos conservadores e ausência de política cultural. "O próprio Ministério da Cultura da França, que é referência, surgiu durante o governo do general De Gaulle. E você tem, na Inglaterra, na Coreia do Sul e em países escandinavos, governos conservadores que investem, e muito, em cultura", diz o secretário. "Tudo depende da visão das pessoas que estão à frente dos governos. O que aconteceu em São Paulo foi um acidente de percurso. O contingenciamento foi revisto e nós teremos, neste ano, o maior Proac [programa de fomento da Secretaria de Estado] da história. Serão R$ 100 milhões aplicados via [renúncia fiscal de] ICMS."

Sá Leitão, um difusor da ideia de cultura como negócio e mercado, defende que o Estado tem o dever de contribuir para o funcionamento de instituições de referência e garantir a proteção e a restauração do patrimônio histórico - atividades que não têm como se sustentar com a iniciativa privada. E o governo deve, ainda, na sua opinião, garantir a existência de incentivos fiscais para a área.

Esse balanço entre as diferentes facetas da cultura é definido pelo advogado Fábio de Sá Cesnik a partir de duas expressões: viés social e viés econômico. "Ambos os vieses são importantes. A questão é que, no geral, eles são confundidos. Confundidos no momento de criação dos instrumentos públicos de fomento, nos discursos dos políticos e, propositalmente ou não, pelos realizadores culturais", diz. "De maneira superficial, a diferença entre esquerda e direita é que o discurso da esquerda privilegia mais o social e o da direita, o econômico."

Cesnik conclui, a partir dessa lógica, que os governos conservadores tendem a preservar o viés econômico. "O viés social precisará brigar por espaço para conseguir continuar sendo fomentado." O atual governo indica, no entanto, querer atingir os grandes espetáculos musicais. "Esses eventos talvez sejam os maiores responsáveis pelo pagamento de impostos e pela geração de empregos. Quando releio os vieses e aonde se quer chegar no modelo mais à esquerda ou mais à direita, não dá para entender essa opção desse governo."

A contradição apontada por Cesnik é exemplar das dificuldades que a cultura tem, como setor, de unificar uma pauta. "A cultura está com a corda no pescoço, mas o setor fica brigando por questões partidárias e os próprios integrantes do setor se acusam reciprocamente", observa Piquet, do IDG. E se isso acontece é justamente porque trata-se de um setor muito heterogêneo, com demandas díspares e até incompatíveis.

"Até o [governo] Collor, o campo da cultura era composto apenas por artistas e intelectuais. A partir das leis de incentivo e da criação de secretarias municipais e estaduais no país todo, uma outra articulação se forma e o mercado cultural ganha uma outra dimensão. Hoje, temos uma base cultural enorme no Brasil, que recorre a crowdfunding, pequenos editais. Tem muito jovem que nem se interessa pela Lei Rouanet", diz Fábio Maleronka Ferron, curador da série História da Política Cultural, realizada no Sesc. "Apesar de usar o discurso da fragilidade, a cultura tem poder político. Quando o [ex-presidente] Temer extinguiu o MinC, ele voltou atrás em uma semana." Nesta semana, depois da confusão da proposta de cortes, Doria nomeou um conselho de cultura para o Estado.

Se a cultura, como diz Ferron, tem influência política, é porque os artistas têm voz na sociedade, mas não só. O Brasil, hoje, possui um mercado cultural. Ainda que esse mercado tenha sido fomentado pelas leis de incentivo, ele é economicamente relevante. Um relatório da PriceWaterhouse, publicado em 2018, trabalha com uma perspectiva de que o setor cresça, até 2022, a uma taxa de 4,6% ao ano. Só a renúncia fiscal movimentou, desde 1993, R$ 31,2 bilhões - em valores reais, reajustados pelo IPCA. O setor que mais captou recursos foi o de artes cênicas, guarda-chuva no qual estão abrigados os musicais.

Ricardo Piquet, que é engenheiro de formação e entrou na área cultural pela porta de gestão, pondera que, apesar de ser essencial que o setor tente comunicar, para a sociedade, sua relevância econômica, é preciso enfatizar também os demais impactos da cultura. "Ela é um diferencial não apenas para a educação, mas também para a saúde. A emoção do artista e seu clamor junto aos governos não bastam para garantir a sobrevivência do setor. É preciso que a sociedade compre a cultura como um ativo dela, como algo que transforma o seu cotidiano", diz. Outra tecla na qual o executivo bate é a da gestão: "Vimos muitas iniciativas maravilhosas serem implantadas, mas não conseguirem se manter. Sem segurança jurídica e segurança financeira, não há qualificação técnica que se sustente".

Entre o valor intangível da cultura e as métricas demandadas pela contemporaneidade - dominada pela esfera econômica -, os gestores e produtores culturais vivem num delicado equilíbrio - que, não raro, vira desequilíbrio. A cineasta Laís Bodanzky, que até o início deste ano vivia apenas o lado da produção e da criação, está experimentando esse desafio à frente da Spcine, empresa municipal dedicada ao audiovisual da qual tornou-se presidente no mês passado.

"Eu tive, neste curto período, a chance de entender o setor audiovisual no macro. O macro no sentido de que o audiovisual não é só o cinema, porque ele inclui, por exemplo, os games. E o audiovisual, além disso, faz parte de um outro macrossetor, que é a economia criativa, a área da economia que mais cresce nos últimos anos, mesmo nos momentos de crise", diz Laís.

Mas a cineasta coloca uma outra dimensão sobre a mesa: a do sonho, que não cabe nos números. "É difícil para parte da sociedade entender que é muito complicado você colocar um valor num produto audiovisual. Porque um filme é um protótipo, ele é sempre um experimento. E a política pública, na área de cultura, tem de dar chance para que o novo apareça. Quando você dá chance para o novo, é uma turma inteira que vem junto. E um país precisa desse moto contínuo, que é o sonho", afirma a presidente da Spcine.

Na opinião de Sá Leitão, há, na sociedade brasileira, cada vez mais gente que entende o valor da cultura. "A percepção sobre a importância da cultura está crescendo, mas ainda não é generalizada. No campo da política, essa percepção ainda é pequena", avalia o gestor, que, antes de tornar-se secretário de Doria, fez parte dos governos de Lula (PT) e Temer (MDB) e da Prefeitura do Rio, na gestão de Eduardo Paes (na época, no PMDB).

Após a extinção do MinC, a cultura passou a dividir espaço, no Ministério da Cidadania, com o Esporte e o Desenvolvimento Social, que cuida, por exemplo, do programa Bolsa Família. Nesse contexto, a questão TCU X Ancine corre o risco de ficar espremida entre a Lei Rouanet e o Bolsa Família. Para muitos, esse lugar no organograma do governo federal não deixa de ser simbólico.

"A gente vive hoje uma situação em que a cultura foi marginalizada e colocada num lugar no qual ela não está conseguindo respirar", afirma Laís. "Com isso, você pode entristecer um país e fazê-lo ganhar menos, inclusive economicamente. Quando se faz a economia criativa girar, todo mundo ganha. E, para isso, o pequeno, o médio e o grande precisam existir, sempre com responsabilidade com o que é público. E o que o público não é do governo, é nosso."

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