quinta-feira, 11 de abril de 2019

Ascânio Seleme: Nossa culpa, nossa máxima culpa

- O Globo

Nenhuma dúvida de que a responsabilidade pela tragédia da enchente que matou dez pessoas e convulsionou o Rio na segunda e terça-feira deve ser compartilhada pelo prefeito Marcelo Crivella, em razão da sua reconhecida incompetência administrativa, pelo governador Wilson Witzel, que fingiu não ter nada a ver com o dilúvio, e por algumas outras entidades políticas que se sucederam no comando da cidade e do estado e que não cumpriram com suas obrigações constitucionais e devem responder por omissão criminosa.

Mas há outros vilões nesse drama vivido mais uma vez no Rio. Nós, os moradores da cidade, somos também culpados por este quadro. Vivemos de costas para a nossa cidade, nos lixamos para ela. Não faltam alertas, não faltam iniciativas como o “Rio, eu amo, eu cuido”, não faltam bons cariocas que não jogam um fiapo fora do local a ele designado. Mas sobram os que apenas usam e abusam da cidade. São os sujismundos que entopem de lixo as ruas, os rios, os bueiros.

A nossa cidade é um lixo só. Para onde quer que você olhe, verá papel, plástico, pedaços de madeira, vidro, ferro, restos de obras, material orgânico, entulhos de todos os tipos espalhados pelos quatro cantos. Num único dia, no sábado da semana que antecedeu ao carnaval, a Comlurb recolheu 43,7 toneladas de lixo deixadas na rua por onde passaram 61 blocos. Uma vergonha. Há três semanas, durante uma operação especial realizada pela Secretaria municipal de Ordem Pública, foram coletadas 2,8 toneladas de rejeitos ao redor da Uerj, no Maracanã. Até os universitários tratam com descaso a sua cidade.

A enchente de segunda e terça-feira foi uma das maiores que o Rio já viu. Com tamanho volume de água, seria mesmo muito difícil controlar sua fúria. Mas poderia ter sido minimizada, e ter sua duração reduzida. Para isso, deveriam ter sido feitas obras para ampliar galerias e abrir novos canais de escoamento, trabalho para a administração pública, e estas vias deveriam estar desentupidas do lixo que as pessoas jogam nas ruas. Obviamente, os cariocas têm que cobrar medidas e obras urgentes do prefeito e do governador que elegeram. Mas devem também dar a sua colaboração em favor da sua cidade. E isso é da mesma forma urgente. Das dez mil toneladas de lixo coletadas pela Comlurb no Rio diariamente, quatro mil são recolhidas nas ruas, incluindo lixeiras.

Também somos culpados por consumir demais, desperdiçar demais, queimar combustível fóssil demais. Bobagem querer culpar Trump, somos nós que aquecemos o planeta, que mudamos o clima da Terra de maneira permanente. É nossa obrigação aprender a lidar responsavelmente com nosso ecossistema. Consumir menos, produzir menos lixo, separar o lixo, reciclar. O mundo mudou de maneira definitiva por nossa causa e só vai piorar se não cuidarmos dele, começando pela nossa cidade.

O cidadão deve ser o primeiro a sair em busca de soluções para sua cidade. Não basta pedir que o poder público se mobilize ou nos mobilize. Há exemplos construtivos de iniciativas governamentais no Brasil e em todo o mundo para reduzir emissões e tratar de maneira adequada o lixo, mas todas elas precisam da contribuição vigorosa das pessoas.

O programa de reciclagem da Suécia é um exemplo para toda a Europa e deveria servir a nós também. Para se ter uma ideia do tamanho do seu êxito, desde 2011 apenas 1% do lixo produzido no país é enviado para aterros sanitários. Significa que 99% são totalmente reciclados. O investimento valeu a pena, e o sucesso foi tão estrondoso que as usinas de reciclagem espalhadas no país estão importando lixo para manter sua operação.

Claro que esse sucesso deve ser atribuído em grande parte ao cidadão sueco, que separa seu lixo de maneira eficiente e permanente. Não há como dar errado se todos fizerem o primeiro e mais básico dever de casa. Em São Paulo, o programa “Recicla Sampa” pede apenas que os cidadãos separem suas sobras em dois sacos, um de orgânicos e outro de materiais recicláveis. É simples demais, fácil demais. Separar o lixo e não jogar nada nas ruas são ações importantíssimas. Embora pareçam banais, medidas assim poderiam ter salvado vidas na segunda e terça passadas no Rio.

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