domingo, 28 de abril de 2019

O testamento de Zygmunt Bauman

Sociólogo polonês afirmou que a ideia de que 'não existe alternativa' faz com que as pessoas aceitem as piores barbaridades

Dirce Waltrick do Amarante* / Aliás / O Estado de S.Paulo

Interessante observar que Zygmunt Bauman (1925-2017) é considerado um pensador bastante prolixo, a ponto de “falar” até mesmo depois de morto. De fato, ele escreveu muito, falou muito, mas parece que não lhe demos a devida atenção, caso contrário não estaríamos vivendo hoje uma situação tão caótica, no plano moral e político. Talvez se possa citar uma declaração paradoxal feita por um escritor desconhecido em 23 de agosto de 1939, mencionada por Elias Canetti, e reproduzida nesse último livro: “Acabou. Fosse eu realmente um escritor, teria sido capaz de evitar a guerra.”

Bauman e Donskis, como muitos outros escritores, poetas e pensadores, parecem representar a profetisa Cassandra, que previu a Guerra de Troia, mas foi considerada louca, ou uma “voz irritante”, termo usado pelo jornalista e escritor Arthur Koestler, citado por Bauman, para se referir aos propagandistas que tentaram anunciar o que se passava no então “jovem Terceiro Reich”, sem, contudo, terem conseguido nem advertir nem abalar seu povo.

Ouvidos moucos permitem, por exemplo, que as mineradoras continuem atuando no mundo, mesmo que Lewis Mumford tenha alertado, lá nos anos 1950, sobre o “destrutivo” processo de mineração: “Seu produto imediato é desorganizado e inorgânico; e aquilo que é uma vez retirado da pedreira ou da boca da mina não pode ser reposto.”

Qualquer voz dissonante não é bem-vista, pois, concluiu Donskis, acreditamos viver “num mundo sem alternativas. É um mundo que propõe uma realidade única e que rotula de lunáticos todos aqueles que acreditam na existência de uma alternativa para tudo”. Esse mundo “inundado de crenças fatalistas e deterministas como hoje” é alimentado pelo medo generalizado, que sustenta o mal líquido, disfarçado de neutralidade e imparcialidade diante da impossibilidade de fazer melhor, ou disfarçado de “bondade e amor”, oferecendo alternativas absurdas como única forma de salvação.

Os “heróis” do mal líquido tentam privar “a humanidade de seus sonhos, projetos alternativos e poderes de dissensão. Ao fazê-lo, agem como protagonistas das contrarrevoluções, da obediência e da submissão”, segundo Bauman. Além disso, o mal líquido traz à luz políticos amorais e oportunistas, “apresentando-se sob o disfarce de mártires e dissidentes para os quais o fascismo, o nacionalismo radical e qualquer outra forma de desprezo à liberdade e à dignidade humana parecem simplesmente uma oportunidade de épater la bourgeoisie”.

Ao contrário do mal sólido, que impunha à força novas regras ao jogo, o mal líquido não “impõe” nada, trabalha com a ideia de “sedução e desunião” e parece “oferecer” o melhor dos mundos para um mundo sem alternativas. O mal sólido põe em xeque a “capacidade das instituições democráticas de cumprirem suas promessas”, como se elas tivessem se transformado num jogo sem sentido no qual, como afirma Bauman, “políticos fingem governar, enquanto os detentores do poder econômico fingem ser governados. Para manter o estilo, as pessoas se arrastam para as urnas a cada quatro anos, fingindo serem cidadãos”. Restaria aos governos eleitos, como somos induzidos a pensar, “administrar a economia”, cujos fracassos são justificados pelas tais “leis de mercado”. Somos lançados a esse ciclo vicioso, do qual só sairemos se nos recuperarmos de nossa “fragilidade paralisante”.

Donskis cita José Saramago, que, em Cadernos de Lanzarote, afirmou: “Deus é o silêncio do universo e o homem é o grito que dá sentido a esse silêncio.” E se já não se ouve esse grito é porque a sociedade está paralisada, e essa paralisia estaria ligada também à falta de memória, ao seu apagamento. Segundo Saramago, “ao perderem a memória, as pessoas tornam-se incapazes de qualquer questionamento crítico de si mesmas e do mundo à sua volta”.

Aliás, a falta de memória apaga rapidamente as catástrofes criadas pelo homem, como a da Ilha de Páscoa, relembrada por Bauman. Diz o pensador que com a chegada dos europeus, em 1772, A Ilha de Páscoa viu sua população diminuir enormemente: “O principal culpado e a causa imediata dessa catástrofe foram a agricultura e a caça excessivas, resultando no desflorestamento da ilha, seguido pela erosão da camada superficial do solo.”

Em tempos de bandeirinhas e hinos, Bauman e Donskis alertam para a diferença entre patriotismo (silencioso e defensivo) e nacionalismo (ofensivo e agressivo), esse último nem sempre bem-sucedido, basta pensarmos no Reino Unido e seu dilema em relação ao Brexit, vitorioso no referendo de 2016, depois que a população foi induzida pelo jargão NHA (Não Há Alternativa) de nacionalistas como Nigel Farage, que, a propósito, andava pelas ruas de Londres discursando sobre um caminhão, anunciando tragédias, medos e ódio aos imigrantes, os quais, segundo ele, acabariam com a identidade e a economia “britânicas”. A história por lá não vai nada bem.

*Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de ‘Cenas do Teatro Moderno e Contemporâneo’ (Iluminuras)

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