quarta-feira, 15 de maio de 2019

Merval Pereira: Crise em gestação

- O Globo

Recusa de Bolsonaro à negociação parlamentar baseada em programa se parece com início do governo Lula

Estamos assistindo, já há algum tempo, a um embate entre o Congresso e o governo Bolsonaro potencialmente gerador de crise institucional. O governo vem sofrendo seguidas derrotas parlamentares, e não parece equipado para essa disputa. Há um clima de desconfiança mútua difícil de ser desanuviado.

O sentimento generalizado entre os congressistas é de que, uma vez aprovada a reforma da Previdência, o governo Bolsonaro voltará a seus ataques ao Congresso. Eleito em nome de uma suposta “nova política”, Bolsonaro procura alardear distância do fisiologismo, logo ele, que durante 27 anos frequentou o baixo clero, a parte mais sem credibilidade de uma Câmara que veio se desgastando ao longo do tempo.

Parecia ir no caminho certo quando montou seu ministério alegadamente com base técnica, sem levar em conta pressões políticas. Logo se viu que as escolhas não tinham nada de técnicas, baseavam-se majoritariamente na ideologia radical por que parte de seu eleitorado ansiava, inclusive os filhos e ele próprio.

Sua recusa a uma negociação parlamentar baseada em programa de governo se parece muito com o começo do governo Lula. José Dirceu organizou as negociações com os partidos para formar o ministério, e foi desautorizado por Lula, que não queria a participação do PMDB.

Lula, que havia sido deputado constituinte, denunciava que o Congresso tinha pelo menos 300 picaretas, ou seja, mais da metade de seus integrantes.

O que parecia ser uma medida saneadora foi, na verdade, o embrião do mensalão, que desaguaria no petrolão. Lula, assim como Collor, assim como Dilma, queria o controle do Congresso, sem ter que dividir o poder. Collor e Dilma não tinham apoio partidário, nem sabiam lidar com os políticos.

Não por serem contra a barganha por baixo do pano, mas porque eram ambiciosos, Collor com ganância pelo dinheiro, Dilma pelo poder. Lula, pragmático, quando viu que não governaria sem o apoio do PMDB, e que os “picaretas” desejavam carne fresca, decidiu dar-lhes o que queriam, e montou um governo fisiológico pluripartidário.

Comprando o apoio parlamentar com a divisão do butim, Lula corrompeu o sistema partidário que estava pronto para ser corrompido, deixando a melhor parte para si e os seus, como ficou comprovado.

O mesmo acontece agora com Bolsonaro. Sua bandeira eleitoral, ao encontro do desejo de uma ampla gama de cidadãos, foi a renovação política, compreendida de diversas maneiras pelo eleitorado. Uma boa parte entendeu que derrotar o PT favoreceria uma nova política parlamentar, e acreditou na renovação do Congresso para alcançar um governo de centro-direita que a eleição negara.

Outros quiseram renovação em direção oposta, levando uma direita raivosa ao poder, com gosto de sangue na boca, literal e metaforicamente. Bolsonaro teve a habilidade política de circular por esses dois mundos, diametralmente opostos, prometendo-lhes o que aspiravam.

Por isso, sua aparente incoerência, ora defendendo a liberdade de expressão, ora a intervenção governamental nas escolas e universidades. Há vezes em que parece um liberal na economia, mas logo dá passos atrás, lembrando-se de sua história parlamentar estatista.

A retórica da violência que dominou sua atividade parlamentar, e a dos filhos, continua presente, encoberta às vezes por medidas sensatas. A presença dos militares no governo, num primeiro momento, pareceu a montagem de um esquema paralelo.

Viu-se, no entanto, que aqueles militares não estão ali para referendar movimentos golpistas, pretendem aproveitar a oportunidade para consolidar uma imagem democrática das Forças Armadas.

Foi assim, por exemplo, com a crise na Venezuela. A ala que defendia uma invasão, tendo os Estados Unidos como líder, foi controlada pelos generais. Mas não era isso que a ala radicalizada dos bolsonaristas queria.

Desde o início do governo a relação de Bolsonaro com o Congresso, especialmente a Câmara, tem sido errática, com o presidente atribuindo aos deputados interesses puramente fisiológicos, para em seguida aceitar criar mais dois ministérios, ou retirar a Coaf de Moro.

Qual o interesse dos políticos em tirar o Coaf do Ministério da Justiça? Por que políticos querem indicar outros políticos para novos ministérios? Qualquer resposta cheira a fisiologismo, e dá boas razões para que Bolsonaro jogue no Congresso a culpa por um fracasso.

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