segunda-feira, 17 de junho de 2019

Cacá Diegues: A volta da inteligência

- O Globo

Precisamos saudar a possibilidade de a verdade estar entre várias e distintas formas de refletir

Gostei muito de artigo do cineasta José Padilha, publicado há poucos dias, na “Folha de S.Paulo”. Trata-se de um texto raro, uma fértil desafinada no coro dos contentes com a polarização selvagem na política brasileira. Nele, Padilha afirma sobretudo que não é por concordar com alguma consideração de um dos lados que ele está necessariamente de acordo com todo o resto do que esse lado proclama.

E dá exemplos, como estes a seguir. “Nada impede que alguém admire o combate do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) às milícias, que considere importante o ataque à roubalheira de Lula e companhia, que seja a favor da reforma da Previdência, que ache que Moro errou feio ao se associar a Bolsonaro, que defenda a liberdade sexual e a liberação da maconha (...) e que seja a favor da prisão após condenação em segunda instância. Uma pessoa assim, porém, não cabe nem no petismo nem no bolsonarismo”. Há muito tempo que andávamos precisando de alguém que pensasse e falasse assim.

Talvez devamos perdoar os políticos pelas simplificações que produzem em seus discursos. Afinal de contas, eles precisam agradar a seus eleitores, fazer por merecer o voto deles. E merecer o voto deles, aqui, significa aproximar-se de seu pensamento para poder representá-los. É, portanto, natural que os políticos digam o que seus eleitores gostariam de ouvir; que, antes de falar, eles consultem as aspirações do povo que pretendem conquistar. Mas um intelectual livre, um cidadão independente, não pode cedera essa circunstância—ele tem que dize roque pensa ser a verdade, sem se preocupar coma adesão de quem quer que seja, por concordância com as ideias ou astúcia na proposição.

O intelectual militante, o pensador aparelhado, diz o que seu partido afirma pensar. E o que seu partido afirma pensar é um conjunto de ideias nem sempre fiel a oque considera sera verdade, na hipótese de existir uma verdade definitiva. Não passa de um conjunto de ideias conveniente aos interesses de um grupo político que pretende tomar o poder. E não é apenas a tomada do poder que muda a história e, por extensão, o bem-estar da humanidade envolvida.

Como muitos outros brasileiros, há seis meses venho tentando entender o novo governo do país, acho que para entender melhor para onde estamos indo. Não votei em Jair Bolsonaro e escrevi, em agosto de 2018, bem antes das eleições, que “chega de folclore em torno do capitão-candidato, de considerá-lo uma anedota passageira, e compreender que, por trás do fenômeno, existe uma tendência de comportamento que corresponde ao desejo de uma parte da população”. Mas quem elegeu Bolsonaro não foi apenas uma simples parte, mas a grande maioria da população. Uma vitória democrática que é preciso respeitar, sem cometer o erro de sair por aí xingando a mãe do eleito, anunciando com ódio que nada do que ele fizer vai dar certo. Mesmo que fiquemos na oposição.

Quando, em 1964, os militares tomaram o poder através de um golpe de força, era como se acordássemos numa manhã solar de abril coma polícia ao pé de nossa cama. Não havia o que fazer. Agora, não. Agora discutíamos com quem não estávamos de acordo (em alguns casos, com os dois lados polarizados) e a população acabou por escolhê-los. É preciso entender por que, o que tento fazer nestes primeiros meses de governo, com a boa vontade que o futuro do Brasil exige.

Mas se, durante a campanha, o candidato ensinava à menina, com os dedos da mão, o gesto de empunhar uma arma, como presidente libera as armas de fogo, radares no trânsito, cadeirinha par acrianças nos carros, agrotóxicos que envenenam a comida, um projeto anticrime que incentiva a polícia a matar. Assim como autoriza ruralistas a liquidar quem ameace sua propriedade, pouco se importa com a defesa do meio-ambiente que protege a vida da população. E essas medidas vão fazendo crescer o potencial de brasileiros mortos regularmente, sem causa.

Aí lembro que o psiquiatra e escritor austríaco Viktor Frankl não se importava, nem um pouco, coma clássica frustração sexual freudiana como origem de nossos males. Para ele, o que provoca a insatisfação da humanidade é a falta de sentido para a existência. Pensando no Brasil, talvez tivesse razão.

Naquele artigo do ano passado, terminávamos assim: “E porque não entendem, nem fazem questão de entender o que se passa, elegem a razão e o conhecimento como inimigos, põem a inteligência fora de moda”. Para início de qualquer conversa, precisamos recuperara inteligência como método, saudando a possibilidade de a verdade estar entre várias e distintas formas de refletir. Descobrir que ser radical é apenas tomar cada coisa pela sua raiz.

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