sábado, 15 de junho de 2019

Daniel Aarão Reis: Acima de suspeitas

- O Globo

O que está em jogo é o trabalho do ex-juiz Moro, ungido pela boa-fé e a vontade de crer de muitos, e a matreirice de alguns

A democracia pode ser subvertida sem o uso da força? Foi David Runciman quem formulou a indagação.

Escândalos recentes proporcionaram referências para pensar o assunto. Em 2010, Julian Assange, fundador do site Wikileaks, divulgou documentos sigilosos do Exército e do governo dos EUA, transmitidos por Chelsea Manning, evidenciando malfeitos, falsidades e outras falcatruas. Edward Snowden, em 2013, denunciou o sistema de vigilância e espionagem que agências oficiais americanas mantinham sobre todo o mundo, incluindo os próprios cidadãos. E de como autoridades mentiam com a cara mais lavada a respeito destes procedimentos, negando-os com a veemência dos puros ou dos cínicos. Em 2016, vieram à tona os Panama Papers, milhões de documentos, envolvendo autoridades e empresários de diversos países, mostrando como, por trás de companhias de fachada, ocultavam-se nobres atividades como tráfico de drogas e evasão fiscal.

Feitas as revelações, em vez da punição aos malfeitores, encadeou-se a caça aos autores das denúncias. Manning, condenada a sete anos de prisão. Snowden, obrigado a um precário refúgio na Rússia. Assange, agora sob o risco de extradição para os Estados Unidos, onde há tempos querem sua cabeça.

Por que as denúncias inquietaram e irritaram os poderosos? Porque revelaram como agem e mentem as elites econômicas, políticas e militares. Em contrapartida, cresceu a consciência do poder — e do perigo — representados pelos meios criados pela revolução informática. Indispensáveis, responsáveis por uma abertura inédita de horizontes, emancipadores, mas, ao mesmo tempo, capazes de um insuspeitado poder de distorção, de falsificação e de controle sobre a vida de todos e de cada um.

Alguém já disse que esta pode ser a última geração de pessoas livres. Uma profecia sinistra que poderá tornar-se real se a cidadania não reagir a tempo.

De modo análogo, o esplêndido trabalho dos jornalistas do Intercept faz tremer as bases de nossa frágil democracia. Ao contrário da sanha persecutória que já se desenha contra os que apenas veicularam as denúncias, cresce a consciência de que, de modo nenhum, as conversas e articulações evidenciadas podem ou devem ser consideradas “normais”.

Não podem ser considerados normais procedimentos que atentam contra a ordem jurídica e os mais elementares princípios éticos e morais.

Houve uma quebra de confiança. Ora, ainda segundo Runciman, a democracia baseia-se numa questão de confiança —quando a confiança acaba, a democracia desmorona. O que está em jogo não é o combate à corrupção. Conforme atestam as pesquisas, a corrupção é condenada por amplas maiorias, exasperadas, com razão, pelo saque organizado dos dinheiros públicos.

O que está em jogo é o trabalho do ex-juiz Sergio Moro, ungido pela boa-fé e a vontade de crer de muitos, e a matreirice de alguns, como um novo Girolamo Savonarola, austero nos seus ternos e camisas pretas, impenetrável na sua falta de memória, incorruptível na fala dos amigos e admiradores. Em questão igualmente está um grupo de procuradores transformados numa corriola do juiz e de gente ainda mais graúda.

As revelações apenas começaram. É provável que mais pessoas sejam afetadas. Os amigos de Moro se apressam a apoiá-lo. Mas o Intercept está apenas divulgando a verdade. E seus métodos são tão questionáveis como a legítima defesa de uma pessoa que reage a um assalto. E por isso seus jornalistas serão defendidos e protegidos pela opinião pública democrática.

A sociedade deve aproveitar a oportunidade para responsabilizar os infratores. Isto é elementar e é o de menos. O mais importante é imaginar mecanismos de controle social sobre o poder e os meios proporcionados pela revolução informática. Só assim será restaurada a confiança, agora abalada, na democracia. É preciso que tudo fique muito claro. Caiam os que tiverem de cair, porque, ao contrário do que disse um honrado general, não há em uma república democrática ninguém, rigorosamente ninguém, acima de qualquer suspeita.

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