sexta-feira, 21 de junho de 2019

*José de Souza Martins: Nossa economia dual

Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

Quando a estrutura econômica se divorcia da estrutura social, que passam a se mover em ritmos entre si diferentes, como no Brasil destes tempos, o drama está criado
 
O desenvolvimento econômico brasileiro foi, por largo tempo, uma combinação equilibrada de economia moderna com economia atrasada, economia altamente lucrativa com economia de excedentes e trabalho barato, pobreza com fartura. Foi essa a tecnologia social espontânea de uma acumulação subsidiária da modernização econômica e industrial acelerada. A economia dual que nos trouxe, em menos de meio século, da escravidão à industrialização.

A economia dual garantiu, com os produtos da agricultura economicamente atrasada, baseada na produção direta dos meios de vida pelos trabalhadores rurais, sem o primado do cálculo de custo, a alimentação das populações urbanas e dos trabalhadores industriais. Uma alimentação subsidiada pelo trabalho rural sub-remunerado, a dos párias dos direitos sociais e da injustiça previdenciária. A iniquidade lucrativa de um capitalismo singular.

O declínio da economia dual a partir dos anos 1960 desencadeou um ciclo de rupturas em nosso processo histórico com a progressão acumulativa de problemas econômicos e sociais e seus desdobramentos políticos. O atraso, mesmo com a pobreza correlata, havia contido o ritmo de formação do estoque de mão de obra sobrante, o desemprego, por largo tempo.

A crise progressiva da economia dual abriu a brecha das migrações internas e dos problemas sociais decorrentes, como o da urbanização patológica. Excedentes populacionais relativos acumularam-se nas grandes cidades sem o benefício do desenvolvimento urbano e da civilização. As privações estruturais da economia dual transferiram-se para as cidades.

À medida que o grande capital moderno se expandiu, não desenvolveu técnicas econômicas e políticas de reinclusão social, na economia moderna, das massas descartadas. Não levou em conta que o capitalismo só se desenvolve se mantiver sua aliança produtiva com a classe trabalhadora. Produtiva de empregos e de lucros. Mas, também, restauradora da ordem social em crescentes patamares de desenvolvimento. Isto é, de inclusão social, de distribuição de renda e distribuição da cultura erudita, não só técnica e científica. De ampliação dos direitos sociais, e não de sua redução.

Quando a estrutura econômica se divorcia da estrutura social, que passam a se mover em ritmos entre si diferentes, como no Brasil destes tempos, o drama está criado. A técnica política incompetente de transferir o ônus, a responsabilidade e a "culpa" da crise e da decadência para os próprios trabalhadores, só agrava os problemas sociais. Podem chamar economistas, benzedores, pastores, curandeiros, exorcistas, que só aumentarão a fratura e o problema.

À medida que o desenvolvimento econômico se acelera em alguns polos da economia e se atrasa em outros, a distância entre o Brasil escandalosamente próspero e o Brasil escandalosamente atrasado tem se ampliado. O Brasil se afogará no aparentemente insolúvel dilema dos Brasis desencontrados.

Podem fazer os discursos que quiserem, o das bravatas de direita e o das bravatas de esquerda, o do falso discurso crítico de um Brasil polarizado entre antagonismos de ficção política, o da razão do previsível e o do milenarismo do imprevisível. Esse primarismo dicotômico nos manterá à beira do abismo da incerteza e do progresso excludente e cruel.

Nada disso levará à consciência crítica de que carece todo o povo brasileiro e de que carecem nossos políticos para que consigamos vislumbrar nossas possibilidades históricas. Para nelas identificar as que viabilizam uma política de coesão nacional, que reconheça a legitimidade das diferenças e nos abram alternativas viáveis de democratização de riquezas e de oportunidades. Copiar e imitar a cultura de caubói do cinema americano pode nos levar à comédia, mas não à história. Temos que superar nossas limitações e nossa ignorância política.

Mas temos, também, que superar as simplificações de um evolucionismo que deturpa nossa compreensão do lado antievolucionista de nossa história, as funções do nosso atraso social e econômico. E, portanto, as condições sociais para superá-los pela via da integração social dos desvalidos, e não pela via de sua integração forçada nos bolsões de miséria.

Teria sido possível criar em tempo uma alternativa econômica modernizadora para a economia dual através do cooperativismo, da reforma agrária e do agronegócio popular e de família.

Houve um Brasil que deu certo. Temos que descobrir quando e por que surgiu aqui, no próprio corpo da economia moderna e se legitimou politicamente, a tendência ao descarte de pessoas, a criação do brasileiro de segunda classe, o excluído, nem por isso menos real, menos sofrido e menos incluído porque vitimado pela inclusão perversa.

*José de Souza Martins é Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Aparição do Demônio na Fábrica” (Editora 34).

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