segunda-feira, 3 de junho de 2019

Liberalização cambial plena deve ser feita com cautela: Editorial / Valor Econômico

O Banco Central anunciou que pretende aprofundar o processo de liberalização cambial para atingir a plena conversibilidade da moeda. O projeto prevê inclusive revogar a proibição para que pessoas físicas mantenham contas em dólares no país, hoje permitidas para alguns setores, como seguros, empresas de infraestrutura e representações estrangeiras.

A proposta poderá trazer ganhos importantes para a economia, como o acesso a capitais estrangeiros tão preciosos para financiar investimentos; a possibilidade de os brasileiros diversificarem a aplicação de suas economias e a queda de prêmios de risco e de custos de proteção cambial. No caso da permissão de contas em dólares, significa que o BC não precisará arcar com os custos de absorver fortes fluxos de capitais sob a forma de reservas internacionais.

Mas, ao mesmo tempo, o projeto também representa riscos relevantes. No caso da liberação completa da conta de capitais - abrindo mão de mecanismos de controle no ingresso de recursos estrangeiros - a economia poderá ficar mais vulnerável a paradas súbitas nos fluxos de recursos. Isso apesar de o regime de câmbio flutuante e o volume elevado de reservas internacionais operarem como mecanismos estabilizadores.

Quanto a uma permissão generalizada para a abertura de contas em dólares, o risco é uma eventual dolarização da economia, total ou parcial. Nessa condição, o BC perderia um pouco da capacidade de estabilizar a economia internamente. Também teria mais restrições para operar como emprestador de última instância do sistema bancário. O nível de dolarização de um país depende dos fundamentos da economia (quanto mais frágeis, maior o risco de fuga para o dólar) e de fatores institucionais (a dolarização pode ser coibida com restrições legais ou pela presença de mecanismos de indexação). Quanto mais fracos são os fundamentos, mais o país depende de fatores institucionais para evitar uma eventual dolarização.

Isso não quer dizer que o Brasil deva abrir mão dos benefícios da maior liberalização cambial, mas sim que ela deve ser feita na sequência e na dose correta. O Banco Central parece ciente disso. "A gente não quer dizer que daqui a dois ou três meses as pessoas vão ter contas em dólares", disse o presidente do BC, Roberto Campos Neto. "Não faremos nada que coloque em risco a estabilidade financeira", disse o diretor de Regulação do BC, Otavio Damaso, sobre as contas em dólar. No caso da nova lei cambial, que vai avançar na liberalização, a autoridade monetária planeja divulgar, primeiro, uma minuta.

O requisito básico para caminhar na liberalização cambial é um histórico consistente de estabilidade da economia, em várias de suas dimensões - financeira, monetária, fiscal e externa. Sem ignorar o avanço obtido em algumas delas nos últimos anos, não se pode afirmar que o Brasil venceu completamente essa etapa.

No caso da inflação, por exemplo, tivemos dois anos seguidos de cumprimento das metas e ganhos em termos de credibilidade da política monetária, com a plena ancoragem das expectativas. A postura austera do BC foi essencial, mas houve a providencial ajuda de choques favoráveis, como de alimentos, e de uma brutal recessão.

Ainda assim, a política monetária se vê limitada para promover necessários estímulos à economia ante o risco de dominância fiscal, caso não seja aprovada a reforma da Previdência. A queda da dívida pública a níveis comparáveis a de países emergentes é apenas uma promessa para daqui uma década, caso sejam feitas reformas complementares que garantam o cumprimento do teto de gastos.

O Brasil avançou muito na estabilidade financeira desde a crise bancária do Plano Real, com fortalecimento das regras prudenciais e supervisão. Mas o país ainda não tem uma lei de resolução de crises bancárias, o que significa que o mercado financeiro tem incentivos para assumir riscos em excesso e o governo está exposto a um passivo fiscal em potencial.

Além da sequência correta, a liberalização cambial deve ser bem dosada. O Fundo Monetário Internacional (FMI) reconheceu o papel dos controles de capital e intervenções como instrumentos macroprudenciais. Um exemplo de cautela na área é a China. Mesmo com pouco mais de US$ 3 trilhões em reservas e o projeto de internacionalizar sua moeda, vem abrindo com muita parcimônia a sua conta de capital. O Brasil tem a ganhar se mantiver a sua estratégia de liberalização incremental das últimas décadas.

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