terça-feira, 4 de junho de 2019

*Luiz Gonzaga Belluzzo: Peripécias do discurso econômico

- Valor Econômico

Na dita Ciência Econômica, é geral e irrestrita a vacinação anticartesiana, contra o vírus da dúvida metódica

Publicado em março de 2019, o livro "Discourse Analysis and Austerity" oferece ao leitor ensaios interessantes e desafiadores a respeito do caráter performático do discurso econômico.

Na introdução, os autores contam um episódio de 2010. Em maio, ao assumir o cargo, o Secretário do Tesouro do conservador David Cameron recebeu de seu antecessor trabalhista, Liam Byrne, um recado curto e grosso: "Meu caro secretário, sinto informar que não há dinheiro".

A mensagem é simples: se não há dinheiro, corte seus gastos. Depois da crise de 2008, a opinião pública foi submetida a um rigoroso e persistente processo de convencimento. Os especialistas e os comentaristas da mídia repetiam, incansáveis, os mantras que rezavam a inevitabilidade dos sacrifícios.

Ao definir o que estava "errado" e recomendar os remédios, a narrativa da crise buscava e busca seletivamente escolher algumas dimensões da economia para imputar a responsabilidade do ocorrido. Não pode ser de outra maneira: nas comunidades dos humanos a escolha das variáveis está enraizada nos supostos, concepções e categorias da "ciência dominante". O economista Simon Wren-Lewis usou o termo "midiamacro" para descrever a narrativa dominante na mídia, empenhada em disseminar uma certa visão da economia. A narrativa dos déficits e das dívidas está amparada na concepção do Estado como um indivíduo ou uma família. (Confesso que gostaria de cobrar impostos dos meus vizinhos e quitar minhas dívidas com dinheiro de minha emissão).

Também imagino que o filósofo Jurgen Habermas tenha sido poupado da lista negra do ministro Weintraub. Sendo assim, peço vênia (diria o ministro Barroso) para invocar suas lições. Habermas sugere que, além de estarem submetidas à confirmação empírica (ou à rejeição), as teorias da sociedade devem estar sujeitas à demonstração de que são "reflexivamente aceitáveis". A investigação deve compreender não apenas as instituições e práticas sociais, mas também incluir as convicções que os agentes têm sobre a sua própria sociedade - investigar não apenas a realidade social, mas os saberes que se debruçam sobre ela. Uma teoria social é uma teoria a respeito das convicções dos agentes sobre a sua sociedade, sendo ela mesma uma dessas convicções. Na dita Ciência Econômica, é geral e irrestrito o fenômeno da vacinação anticartesiana.

Essa vacina imuniza o pensamento humano contra o perigosíssimo vírus da dúvida metódica. No "Nascimento da Biopolítica", Michel Foucault argumenta que em meados do século XVIII o mercado apareceu como o espaço social que obedecia e devia obedecer a mecanismos "naturais", isto é, mecanismos espontâneos, tão espontâneos que quem tentasse modificá-los só conseguiria alterá-los e desnaturá-los. "O mercado se torna um lugar de verdade".

Assim, ao cuidar do Estado em suas relações com o Mercado, os cientistas da economia buscam a sua verdade. No debate contemporâneo, corações e mentes balançam entre dois extremos: 1) os adeptos da Moderna Teoria Monetária reivindicam a liberdade estatal de emissão monetária ancorada no poder de tributar e apenas submetida às restrições da capacidade produtiva instalada e 2) os adeptos da austeridade fiscal e monetária atribuem a David Ricardo a ideia da ineficácia das políticas anticíclicas: os agentes racionais, aqueles que conhecem a estrutura da economia e sua evolução provável, antecipam o aumento de impostos no futuro para cobrir o déficit incorrido agora. A política econômica para reduzir o desemprego só resultaria em maiores taxas de inflação, subida das taxas de juros, expansão da dívida pública e necessidade de maiores impostos no futuro. A austeridade monetária e fiscal é reivindicada como panaceia destinada a restaurar rapidamente as "condições econômicas normais".

John Maynard Keynes concordaria parcialmente com a Modern Monetary Theory. Maynard sustenta que no âmbito da "economia como um todo" é o gasto das empresas, das famílias, dos estrangeiros e do Estado que "cria" a renda.

Keynes concebe a organização da sociedade como uma teia de relações hierarquizadas entre proprietários capitalistas e trabalhadores. "Se a firma decide empregar trabalhadores para usar o equipamento de capital e gerar um produto, ela deve ter suficiente comando sobre o dinheiro para pagar os salários e as matérias-primas que adquire de outras firmas durante o período de produção, até o momento em que o produto seja convenientemente vendido por dinheiro".

A ideia de comando supõe não apenas a propriedade dos meios de produção, mas também o controle dos meios monetários capazes de mobilizá los. Aqui surgem o crédito e os bancos. A criação de moeda decorre da concessão de crédito novo para financiar os gastos de investimento e de consumo, com a consequente acumulação de ativos e passivos nos balanços dos protagonistas já mencionados.

As decisões dos empresários de colocar em operação o seu estoque de capital existente ou de investir em nova capacidade são tomadas a partir de expectativas a respeito dos rendimentos prováveis, expectativas formadas em condições de incerteza radical. Seria um prodígio se empresários e consumidores antecipassem o "reequilíbrio" das condições de crescimento depois de uma depressão e de um período prolongado de fundo do poço. "Na depressão não há liquidez, exceto a que pode ser criada pelo Federal Reserve, o banco central, no exercício de seu poder de emissão", declarou em 1935 Marriner Eccles, presidente do Fed indicado por Roosevelt.

A "solidez" da renda da comunidade está sempre ameaçada de se dissolver nas incertezas que contaminam a atmosfera em que são tomadas decisões privadas de gasto e de acumulação da riqueza.

Nas economias monetárias, o poder estatal de tributar e de administrar as condições de crédito e de liquidez estão intimamente associados. Os entes soberanos desfrutam de maior liberdade de financiar o gasto ao emitir títulos públicos - riqueza privada de maior qualidade, segurança e liquidez, cúspide dos sistemas monetários modernos. O Banco Central estabelece as mediações entre os bancos privados e a soberania monetária do Estado: cuida de regular as relações entre a moeda como bem público, referência "confiável" para as decisões de prover liquidez à produção, ao consumo e ao investimento - e sua "outra" natureza, a de objeto do enriquecimento privado.

*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

Nenhum comentário: