sábado, 1 de junho de 2019

Merval Pereira: Conflitos republicanos

- O Globo

Se houver um evangélico com competência, que seja indicado para o Supremo, mas não por sua religião

O presidente Jair Bolsonaro provocou mais uma polêmica ao insinuar que estaria na hora de nomear um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal (STF). Mais uma vez ele confunde seu pensamento pessoal com as decisões de Estado.

Precisa se acostumar com o fato de que a opinião dele tem que refletir os anseios da sociedade e o interesse do Estado, e não há interesse em ter um evangélico no STF – nem evangélico, nem católico, nem de qualquer outra religião.

Se houver um evangélico com competência, que seja indicado, mas não por sua religião.

Já houve um ministro militante católico, Carlos Alberto Direito, nomeado por Lula. Que não foi nomeado por ser católico, mas por ser um brilhante jurista.

Lula também nomeou o primeiro ministro negro, Joaquim Barbosa, que tinha todas as qualidades acadêmicas para estar no Supremo e, com razão rejeitava a permanente insinuação do ex-presidente de que o nomeara por ser negro.

Barbosa transformou-se, depois de se aposentar, numa figura central nos embates políticos, por suas posições e seu comportamento como relator do mensalão. E só não foi candidato à presidência em 2018 porque não quis, convidado que foi por vários partidos.

Bolsonaro se referiu à possibilidade de indicar um evangélico para criticar a decisão do Supremo de transformar a homofobia em crime inafiançavel, como o racismo. O julgamento foi suspenso, mas existe uma maioria fixada, pois seis ministros já votaram a favor da criminalização. Bolsonaro reclamou: “Estão legislando”.

O ex-presidente do Supremo Ayres Brito, discorda. Diz que, a rigor, o Supremo não está legislando. Ele lembra que há decisões que, por autorização constitucional, têm efeitos que se aplicam a todos.

Ayres Brito explica, nesse caso: o inciso 41 do artigo 5 da Constituição define: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. O que fez o legislador diante desse comando?, pergunta Ayres Brito. “Nada, ficou silente durante 30 anos, desobedecendo ao comando constitucional”.

Para esses casos, lembra o ministro do STF aposentado, a Constituição tem a figura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) por omissão. Quando houver omissão legislativa, falta da norma regulamentadora, as partes podem entrar no Supremo com uma ADI.

O STF, constatando a omissão, preenche a lacuna, explica Ayres Brito. “Não fazendo uma lei, mas exarando uma decisão que vale enquanto o legislador não cumprir com o seu dever”.

Para tal, o STF, ressalta Brito, não criou uma nova legislação, mas utilizou-se de uma lei preexistente, decidindo aplicar o regime penal do racismo à homofobia, porque os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Também o ministro Luis Roberto Barroso considera que é tarefa do Supremo proteger os direitos fundamentais. Em entrevista à Central da Globonews esta semana ele definiu o que considera ser o papel de uma Corte Constitucional: proteger os direitos fundamentais e a democracia.

“No exercício dessas duas funções, acho que os tribunais devem ser proativos”, afirmou Barroso, para acrescentar: “Em tudo o mais ele deve ser auto-contido. Em outros temas, o legislador deve definir”.

Ele, portanto, rejeita que o Supremo Tribunal Federal legisle substituindo o Congresso, e justifica a decisão de ampliar a possibilidade de aborto, tomada pelo STF com sua relatoria, alegando que o habeas corpus pedido por uma mulher que fora presa por estar numa clinica de aborto tinha que ser dado para proteger o direito da mulher de não continuar a gravidez quando decidir, “ uma profunda convicção pessoal” disse.

Antes de ser ministro, Barroso foi também o advogado da causa que permitiu o aborto de fetos anencéfalos por decisão do mesmo STF. Ele tem a convicção de que cabe aos ministros iluministas “empurrar a história”, nesse caso para atingir avanços comportamentais.

O que Barroso considera avanço, no entanto, desagrada aos evangélicos, e por isso Bolsonaro fez a crítica à decisão, insinuando colocar no STF um ministro sintonizado com esse pensamento conservador.

Mas não é preciso ser evangélico para ser contra o aborto. O ministro aposentado do STF Eros Grau, de esquerda, se posiciona contra com clareza: “Não há nenhuma dúvida, pois, a respeito do fato de que há, no aborto destruição da vida”.

É a tal ponto contra que já chamou de Herodes um colega seu que defendia o aborto.

O astro de "Cantando na chuva" é Gene Kelly, e não Fred Astaire como escrevi.

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