quarta-feira, 31 de julho de 2019

Vera Magalhães: Freios e contrapesos

- O Estado de S. Paulo

Com militares acuados, cabe ao Congresso e ao STF mostrar ao presidente limites institucionais

Peço desculpas ao leitor acostumado às colunas das quartas-feiras, em que costumo “quebrar” os textos em várias notas, de cunho mais informativo. A escalada da retórica autoritária e sem compromisso com fatos e com a verdade do presidente da República, desde há algumas semanas, me obriga a fazer deste texto uma continuação da minha coluna de domingo, em que alertei para o crescimento do cordão dos puxa-saco que cerca Jair Bolsonaro e dos riscos que isso traz para o debate público e para o próprio ambiente democrático.

Duas perguntas têm sido repetidas nas conversas que tenho com políticos, outros formadores de opinião, leitores, ouvintes, familiares, ministros do Supremo e toda uma gama de pessoas preocupadas com as diatribes bolsonaristas: 1) qual o limite para o que ele pode dizer?, e 2) como fazê-lo parar? Nos dois casos tenho respondido, entre constrangida e preocupada: não dá para saber.

Dizer que tudo bem usar helicóptero para levar a parentada cafona ao casamento do filho futuro embaixador nos Estados Unidos parecia um recorde. Quebrado no mesmo dia com a ameaça a um jornalista, dizendo que ele poderia pegar “cana”. Superado dois dias depois pela indignidade dirigida ao presidente da OAB. Reiterada duas vezes e superada por relativização (comemoração?) pelo assassinato de um cacique indígena e o massacre de 57 presos – que, não custa ser pleonástica, estavam sob custódia do Estado.

Carlos Melo*: ‘Lógica’ de Bolsonaro aguça conflitos e aprofunda mal-estar

- O Estado de S. Paulo

A pergunta repetida é: o que pretende Bolsonaro? Difícil responder.

Após se certificar da aprovação da reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro se desvencilhou do bom senso e do comedimento exigidos ao chefe de Nação. Das declarações estapafúrdias a correspondentes estrangeiros até a agressão à memória das vítimas do regime militar, o Brasil se vê num processo vertiginoso em que o disparate do dia supera o anterior. Uma torrente de despautérios que deixa o País em transe.

A pergunta repetida é: o que pretende Bolsonaro? Difícil responder. No destempero habitual, fruto de personalidade autoritária, o presidente dá tiros a esmo. É o estilo do homem. Aparenta ser mais instintivo que estratégico. Mesmo assim, é claro que sua ação não deixa de ter aqui e ali objetivos e inevitáveis consequências.

O certo é que não fala para a Nação. Nem a totalidade dos 57 milhões de eleitores que o sufragaram sancionaria, na íntegra, o que tem dito. É interessante notar o número de visitas que, presidente, já fez ao Congresso Nacional. Seria a nostalgia dos tempos de deputado, quando qualquer declaração era impune? Estaria governando como se ainda deputado fosse?

Tematicamente, é possível. Mesmo assim, há inegável salto político: dirigindo-se apenas aos que aprovam seu governo – em torno de 30%, de acordo com as pesquisas –, Bolsonaro forja e consolida um relevante campo eleitoral. Na desorientação da oposição e na fragmentação do centro, confiando no alheamento político-eleitoral e na perplexidade das instituições, os destemperos do presidente mantêm sua tropa unida, agregam e dão sentido a setores tão reacionários quanto ele.

Está longe de ser a maioria, mas acaba por somar um contingente que, hoje, o coloca como a principal força política do País. Nada mau para quem há um ano não tinha maiores perspectivas e ainda hoje carece de propostas. O problema é que essa lógica aguça conflitos, aprofunda o mal-estar, no Brasil e no exterior, assusta e afugenta investidores. Pior, pode ao final desagregar o que ainda entendemos como Nação.

* Carlos Melo é cientista político e professor do Insper

Antônio Cláudio Mariz de Oliveira*: Não se governa com o verbo

- O Estado de S.Paulo

Há um ditado da sabedoria mineira que diz: quem fala muito dá bom dia a cavalo

Governa-se, ou deveria ser assim, com ações. As palavras servem para explicar e justificar as condutas. Ambas, ações e palavras, devem ser precedidas de reflexões, análises e ponderações. A palavra pode preceder a ação, mas se esta não for efetivada ou se não estiver consentânea com o que foi dito e anunciado, a palavra será desvalorizada, e o seu autor ficará desacreditado.

Ademais, pensamentos e ideias devem estar previamente alinhados com projetos de interesse coletivo, e não representar desejos pessoais, desalinhados dos anseios da sociedade. Não havendo esse alinhamento, melhor seria o silêncio.

No entanto, como não se tem silenciado, ao menos em respeito ao dia que começa, as entrevistas nos cafés da manhã deveriam ser transferidas para os chás da tarde. Em vez de permanecerem vivas na lembrança dos interlocutores durante todo o dia, essas entrevistas dadas no final da tarde só maltratariam a memória por poucas horas.

Por vezes o conteúdo dos pronunciamentos não é confirmado no dia seguinte, a pretexto de terem sido mal interpretados, ou de terem sido deturpados pela imprensa. Quando a matéria escapa de seu entendimento, ele cria polêmicas por meio de questionamentos incabíveis e inadequados, ou a substitui por questões menores e sem interesse. Em ambas as hipóteses todos os que tomaram conhecimento de sua fala ficam perplexos e confusos.

A política da raiva: Editorial / O Estado de S. Paulo

O destampatório de Jair Bolsonaro nos últimos dias – especialmente virulento mesmo para os padrões do presidente – contribui para ampliar o seu isolamento político. Afinal, grande parte do eleitorado que sufragou o nome de Bolsonaro nas urnas no ano passado não o fez para que ele, uma vez na Presidência, passasse seus dias a alimentar violentos antagonismos com diversos setores da sociedade, dificultando consideravelmente a governabilidade. Mesmo entre os políticos que se elegeram na onda do bolsonarismo já há os que procuram manter uma distância prudente do presidente, pois temem ser identificados com a irresponsabilidade que tem caracterizado o comportamento de Bolsonaro.

Se entusiasmam os devotos mais fiéis da seita bolsonarista, as diatribes do presidente colaboram para anuviar ainda mais o sombrio horizonte político e econômico do País. O homem encarregado pelas urnas de dirigir os destinos nacionais choca diariamente a maioria dos brasileiros com declarações absurdas, baseadas em nada além de devaneios e despejadas sem qualquer respeito pelas normas da democracia e mesmo da civilidade. Tal comportamento irrefletido torna imprevisível tudo o que emana do gabinete presidencial. Hoje, sob esse comando irracional, é impossível dizer para onde vai o País.

Merval Pereira: Presidente em transe

- O Globo

Bolsonaro está levando o governo brasileiro como se estivesse em uma mesa de botequim, ou no Twitter, ou em outro meio digital

Ter um presidente sem superego, sem limites e controles, não é fácil. É um teste para nossa democracia, que tem que impor os limites. Nem se fale na insensibilidade, na falta de respeito com os mortos de um período negro de nossa história.

Ou na atitude pouco civilizada de justificar o massacre de 57 presos da penitenciária de Altamira (PA), numa briga de gangues, com os crimes que cometeram. Perguntado sobre sua reação ao massacre, o presidente respondeu: “Pergunte às vítimas deles o que acham”.

Ao dar uma explicação, que não lhe foi pedida, com aparente sentimento de raiva, sobre a morte do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o presidente Bolsonaro mostrou que pode ser irresponsável mesmo fora do palanque.

Primeiro sugeriu, e depois afirmou, que ele foi “justiçado” por seu próprio grupo guerrilheiro. Documentos oficiais do governo brasileiro, entre eles o relatório da Comissão da Verdade e um atestado de óbito dado pelo Ministério dos Direitos Humanos de seu governo, indicam que Fernando Santa Cruz, então com 26 anos, militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), foi preso no Rio e levado para uma instituição militar.

É dado como desaparecido até hoje, e há versões de que seu corpo possa ter sido incinerado. Bolsonaro, no dia seguinte, voltou ao tema, e confidenciou que sua fala “foi coisa minha, coisa pessoal”, provavelmente para se livrar de ter que explicar ao Supremo Tribunal Federal (STF) onde obteve tal informação.

Elio Gaspari: A ‘realidade paralela’ de Bolsonaro

- O Globo / Folha de S. Paulo

Se Jair Bolsonaro conversasse com os septuagenários veteranos da “tigrada” da ditadura, não teria chamado o general da reserva Luiz Rocha Paiva de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro). Ele foi um dos principais colaboradores na manutenção do site Terrorismo Nunca Mais. Talvez também não tivesse sugerido que Fernando Santa Cruz, desaparecido desde 1974, quando tinha 26 anos, foi executado por militantes de esquerda. Fernando era o pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que tinha menos de 2 anos quando ele desapareceu.

O caso de Fernando Santa Cruz exemplifica, como poucos outros, o assassinato de uma pessoa que tinha vida legal, família constituída e domicílio conhecido. Ele morreu no último mês do governo Médici. A política de extermínio das organizações armadas brasileiras que agiam nas cidades já tinha esfriado, pois elas haviam sido esmigalhadas. Em novembro, um comando do DOI de São Paulo matou Sônia Maria Lopes de Moraes, da Ação Libertadora Nacional, e Antônio Carlos Bicalho Lana, que se escondiam no litoral paulista. Em dezembro, o Centro de Informações do Exército sequestrou em Buenos Aires e matou no Rio o ex-major Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, que haviam militado na Vanguarda Popular Revolucionária. Depois disso, nada. (Do Natal de 1973 ao final de 1974, mataram cerca de 40 militantes do PCdoB nas matas do Araguaia, inclusive os que se renderam. Ou, numa realidade paralela, foram todos resgatados por um disco voador albanês) Nesse período, deu-se a decapitação da liderança do Partido Comunista, que não pegou em armas.

Bernardo Mello Franco: O governador e o Pateta

- O Globo

Witzel prometeu trazer a Disney para a Sapucaí, mas não combinou com os americanos. Agora ele ameaça “prender maconheiro na praia”, apesar de a medida não ser prevista em lei

Wilson Witzel gosta de se fantasiar de xerife, mas às vezes aparece com outros figurinos. No carnaval, ele imitou o ex-prefeito Eduardo Paes e vestiu um
chapéu Panamá para ir ao Sambódromo. Em vez de aplausos, ouviu uma sonora vaia das arquibancadas.

Apesar da estreia infeliz, o governador não desistiu da Sapucaí. Há três semanas, ele anunciou que pretende assumir o espaço, deixado ao deus-dará pelo bispo Marcelo Crivella. A turma do samba não teve tempo de festejar. O governador prometeu ocupar a passarela com o Mickey, o Pato Donald e a Cinderela.

“Queremos trazer o Disney Parade todo final de semana ali para o Sambódromo”, afirmou.

No início do ano, o governador Ibaneis Reis já havia prometido inaugurar um parque da Disney em Brasília. Foi desmentido pelos americanos e deixou o assunto para lá.

Ontem consultei a empresa sobre o factoide de Witzel. A Disney informou que não tem planos para o Rio nem manteve contato com o ex-juiz. O Pateta pode ser bobo, mas não gosta de concorrência.

Bolsonaro ainda não assumiu a presidência: Editorial / O Globo

Afirmações em desacordo com o cargo que ocupa formalmente prejudicam o governo e o país

Integrante da bancada do baixo clero durante 28 anos, o deputado e ex-capitão Jair Bolsonaro notabilizou-se pelo histrionismo. Sempre defendeu a ditadura militar e sua violência contra opositores, e trabalhou em favor de demandas corporativistas dos militares. Mas soube aproveitar ventos favoráveis para se tornar um candidato viável em 2018.

Teve a seu favor o cansaço com o lulopetismo e a esquerda em geral, assim como a impossibilidade de outras forças políticas lançarem um candidato competitivo de centro.

Outra sorte foi disputar o segundo turno com o representante do PT, Fernando Haddad. Assim, Bolsonaro ganhou uma eleição plebiscitária, atraindo muito eleitor mais pela rejeição à esquerda do que por apoio à sua agenda na totalidade.

Eleito, pensava-se que Bolsonaro abandonaria o figurino do baixo clero, o histrionismo dos tempos de Câmara, entendendo o seu papel. Não é o que se vê.

O presidente mantém o comportamento de baixo clero, e configurava-se o que se temia: ele é uma das maiores ameaças ao próprio governo.

Hélio Schwartsman: Um presidente detestável

- Folha de S. Paulo

Falta a Bolsonaro a decência mínima, que nos faz reconhecer o próximo como semelhante

Já tivemos ditadores como Getúlio Vargas, Médici e Geisel, que ordenaram ou pelo menos toleraram crimes muito mais graves do que Jair Bolsonaro jamais cometerá, mas nenhum deles se revelou um ser humano tão destestável quanto o atual presidente. Falta ao chefe do Executivo aquela decência mínima, que nos faz reconhecer o próximo como um semelhante.

Não ignoro que, na política, é preciso às vezes levantar bandeiras polêmicas e antagonizar adversários. Só que existem modos e modos de fazê-lo. Se o presidente insiste em defender o golpe de 64, não precisaria enaltecer a tortura institucionalizada, que representa a forma mais covarde de violência que o Estado pode infligir contra o indivíduo. Se acha que as políticas identitárias foram longe demais, poderia apenas dizê-lo, sem necessidade de disparar ofensas contra minorias.

De modo análogo, se Bolsonaro deseja criticar um jornalista, o que é pleno direito seu, poderia questionar aspectos técnicos de seu trabalho ou mesmo seus pressupostos filosóficos. Quando opta por atacar sua vida pessoal, dá mostras de que ou não entendeu a dinâmica da liberdade de imprensa ou tem problemas de caráter mesmo.

Bruno Boghossian: Nos porões da degradação

- Folha de S. Paulo

Declarações repulsivas, baseadas na divisão e no ódio, são seu modo de governar

Aquele deputado falastrão que atacava minorias, exaltava torturadorese defendia a matança generalizada já fazia mal ao Brasil. Na cadeira de presidente, ele ameaça conduzir o país inteiro aos porões da degradação e da selvageria.

Jair Bolsonaro faz política há décadas usando a divisão e o ódio como combustíveis. Esse método produziu as declarações repulsivas que lhe renderam fama e, agora, integram sua maneira de governar.

O ataque grotesco ao presidente da OAB mostra que Bolsonaro está disposto a descer muitos degraus. Numa tentativa indecorosa de desqualificar Felipe Santa Cruz, ele passou a desfiar versões sobre o desaparecimento de seu pai na ditadura, sem respaldo em informações objetivas.

Bolsonaro trabalha o tempo todo para demonizar críticos, adversários, instituições que possam restringir seus movimentos ou qualquer um que sirva de contraponto ao governo. Tenta tratá-los como inimigos para despertar aversão a esses personagens entre seus apoiadores.

Ruy Castro*: O falso mito

- Folha de S. Paulo

Curupira, Boitatá, Saci-Pererê e outros querem processar Bolsonaro

Tinha de acontecer. Ao ver o presidente Jair Bolsonaro ser chamado de "Mito! Mito!" por claques profissionais e inocentes úteis, onde quer que apareça, os verdadeiros mitos brasileiros resolveram se unir e protestar contra o que consideram uma usurpação de seus direitos na lenda nacional. Os mitos são figuras simbólicas, que pertencem ao folclore —lendas construídas pelo povo, com o objetivo de nos ensinar ou explicar alguma coisa, mas sempre benignas.

A Mula-Sem-Cabeça, por exemplo, é uma mulher que foi seduzida por um padre e, por isso, nas noites de quarta-feira, transforma-se num animal que, apesar de sem cabeça, relincha e lança chispas pelas narinas. O Boto é o contrário. Nos fins de tarde na Amazônia, aparece para as moças como um rapaz de branco, engravida-as e, depois, novamente boto, volta para o rio. Os dois têm uma conotação moral, mas Bolsonaro só deve ver neles imoralidade.

O Saci-Pererê é o menino negro, de uma perna só, cachimbo na boca e carapuça vermelha, que dá o exemplo pelo contraste, tipo "não façam o que eu faço". Por isso cria confusão na floresta, assusta o gado, lança pistas falsas, joga uns contra os outros. É o que Bolsonaro está fazendo com o país, só que para valer.

Espiral de infâmias: Editorial / Folha de S. Paulo

Em declarações, Bolsonaro escancara leviandade e inclinação autoritária

Numa escalada sem precedentes de insultos às normas de convívio democrático, aos fatos históricos, às evidências científicas e aos direitos humanos, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) aguçou nos últimos dias as tensões e incertezas em torno de sua administração.

Se no início de mandato declarações e medidas estapafúrdias ainda podiam, com boa vontade, ser vistas como tentativa de satisfazer o eleitorado mais fiel e ideológico, o que se verifica agora é um padrão de atitudes que ofendem o Estado de Direito, reforçam preconceitos e aprofundam as divisões políticas.

Além de expor o despreparo do chefe do Executivo para desempenhar suas funções num quadro de coexistência com as diferenças, a insistência na agressão e na boçalidade revela uma personalidade sombria que parece se reconhecer, com júbilo, nas trevas dos porões da ditadura militar.

As insinuações sórdidas acerca do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz —morto, segundo as investigações, sob a guarda do poder autoritário—, são um exemplo da pequenez e da leviandade a que pode chegar o presidente.

Rosângela Bittar: Até o amargo fim

- Valor Econômico

Sem chance para impeachment ou intervenção militar

Jair Bolsonaro caminhou rapidamente, em apenas seis meses, para a beira do precipício e, lá chegando, fez o previsível para pessoas do seu tipo: se atirou. Não satisfeito, começou a cavar sofregamente mais fundo, para continuar a deliciosa vertigem rumo ao nada.

Seu desempenho está mil vezes pior do que quando era um deputado apenas fanfarrão. Ali ninguém era obrigado a ficar ouvindo. Agora é o presidente da República em um país onde o governo invadiu de forma direta e inexorável a vida cotidiana do cidadão. Não dá para ignorar. São declarações absurdas, uma após a outra, e se escora na ala terrível de seu eleitorado, a escória que defende a tortura, dispensando conselhos de outros grupos de apoiadores, gente séria que também integra seu eleitorado. A preferência é do caráter.

As suas intervenções sobre qualquer assunto de qualquer área vão esvaziando sua autoridade. São propostas equivocadas, conceitos estapafúrdios, opiniões draconianas ditas de forma agressiva. É possível ter um presidente impopular em alguns momentos, mas cheio de razão e legitimidade, exercendo com dignidade sua função. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso viveu períodos assim. É difícil, porém, exercer o cargo quando se tem popularidade mas é olhado com desprezo. Quando o presidente passa a ficar no cargo porque não tem outro jeito, já perdeu a autoridade. Assim está o Brasil, com um presidente sem condições políticas, psicológicas, sociais e morais de governar e liderar sequer seu público votante, quanto mais exercer o governo de todos, como a praxe exige. Qual a solução para o vácuo de poder, de credibilidade e equilibrio necessários a manter os cidadãos livres e bem de saúde mental?

Cristiano Romero: Divergências sobre a previdência do servidor

- Valor Econômico

Projeção do IFI prevê R$ 93 bi a menos que a oficial

Existe uma divergência significativa entre estimativas de economia de despesa que a reforma da Previdência proporcionará à União no que diz respeito aos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) dos funcionários públicos dos Três Poderes. De acordo com cálculos do Ministério da Economia, o texto da reforma aprovado pela Câmara dos Deputados em votação de primeiro turno assegura economia, em dez anos, de R$ 159,8 bilhões, o equivalente a 17,11% do ganho total (R$ 933,5 bilhões) projetado para todas as mudanças, inclusive o aumento de 15% para 20% na alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) paga pelos bancos.

A Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, fez projeção bem menos otimista. O estudo especial nº 10 do centro de estudos prevê que o impacto da reforma será, entre 2020 e 2029, de "apenas" R$ 66,8 bilhões. Para o IFI, mesmo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) original do governo produziria um ganho fiscal menor que o imaginado pela equipe econômica - de R$ 120, 6 bilhões, quase R$ 35 bilhões abaixo da estimativa oficial (que, após a aprovação da reforma em primeiro turno, aumentou de R$ 155,4 bilhões para R$ 159,8 bilhões).

O IFI não é uma entidade mantida pela oposição ao governo. Seus quadros possuem formação técnica tão boa quanto a dos integrantes da equipe do Ministério da Economia. O instituto foi criado sob a seguinte inspiração: diante da tirania que tomou conta do antigo Ministério da Fazenda, sob o auspício da desditosa Nova Matriz Econômica, tornou-se necessário ter, no âmbito do setor público, de preferência fora do Poder Executivo, uma instituição para acompanhar as finanças públicas com independência.

José Eli da Veiga*: Vesti la giubba

- Valor Econômico

Ataque rasteiro a diretor do Inpe ilustra que Brasil invadiu a pista contrária ao processo civilizador

Só lunáticos ainda não concluíram que o Brasil invadiu a pista contrária ao processo civilizador. Se faltasse algum fato para confirmar tão trágica constatação, ele veio com tudo há dez dias: o titular do Ministério da Ciência e Tecnologia teve o topete de fazer rasteiro ataque ao professor titular do Instituto de Física da USP e membro da Academia Brasileira de Ciências - Ricardo Magnus Osório Galvão - desde setembro de 2016 na missão de dirigir o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

O ministro capaz de tamanha afronta é um arrivista que nem currículo Lattes tem e se apresenta como palestrante motivacional, coach em desempenho pessoal e profissional, consultor técnico em segurança e diretor de obscura agência de turismo de aventuras.

Não seria preciso mais do que o parágrafo acima para concluir que inegavelmente se chegou ao fim da picada. No entanto, o endosso do engenheiro Marcos Pontes à insânia de seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, também cria uma ótima ocasião para que se chame a atenção dos leitores do Valor para um exemplo do que acontece em nações que, aos trancos e barrancos, conseguem permanecer na pista certa do processo civilizador.

Novos recursos a Estados não podem vir sem contrapartidas: Editorial / Valor Econômico

A melhor maneira de conter os déficits estaduais - a inclusão dos Estados na reforma previdenciária discutida no Congresso Nacional - está sendo deixada de lado, ainda que exista alguma esperança de que eles possam ser inseridos por iniciativa do Senado. A enorme desarrumação das contas fiscais, que tornou-se aberta na fase final do governo de Dilma Rousseff, tem um capítulo essencial no desequilíbrio das contas estaduais e, nelas, o crescente descontrole previdenciário é um dos principais fatores, capaz de levar o déficit conjunto a R$ 90 bilhões no ano passado. Como a solução da reforma para aliviar o peso de pensões e aposentadorias não prosperou, a penúria financeira dos entes federativos continuará aguda.

Os Estados sempre acabam socorridos pela União, recebendo mais recursos em troca de poucas obrigações, as quais costumam em geral descumprir. Ganharam nos estertores do governo Dilma a postergação do prazo de quitação do pagamento de seus débitos por duas décadas, mas as contas continuaram piorando. Um programa de emergência lançado no governo Temer, que pressupunha ajuste nas contas estaduais, foi deixado de lado pela maioria dos Estados e os que a ele aderiram não cumpriram as condições. Um regime de recuperação foi instituído então, com a adesão do Rio de Janeiro, em crise terminal. Ainda assim, o Legislativo estadual fez o que pode para driblar os condicionantes, que trariam um aperto significativo nas despesas com a folha de pagamentos e nos reajustes dos servidores.

Luiz Carlos Azedo: Sarcófago do passado

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo, gera tensões sociais e políticas desnecessárias”

Das muitas faces do fascismo como regime político, a que determina a essência de sua natureza é o terrorismo de Estado. A existência de um partido de massas organizado e militarizado, com um braço armado, que foi a característica principal dos partidos de Benito Mussolini, na Itália, e de Adolf Hitler, na Alemanha, não seria suficiente para a caracterização do regime se não houvesse implementado, de forma sistemática, o terrorismo de Estado.

A supressão de liberdades e garantias individuais e a perseguição sistemática de oposicionistas são suficientes para caracterizar um regime autoritário, seja de direita, seja de esquerda, como na Hungria e na Venezuela, respectivamente. O fascismo aberto se instala, porém, quando a repressão policial é acionada de forma sistemática contra a população em geral, a pretexto de manter a ordem pública, e a perseguição seletiva aos oposicionistas se estabelece com objetivo de eliminar fisicamente os adversários, por meio de prisões, sequestros, torturas e assassinatos.

Foi o que aconteceu, por exemplo, nos regimes militares que se instalaram na América Latina nas décadas de 1950 (Guatemala e Paraguai), 1960 (Argentina, Brasil, Bolívia, República Dominicana, Nicarágua e Peru) e 1970 (Uruguai e Chile), com forte apoio dos Estados Unidos, em razão da guerra fria com a União Soviética e demais países da então chamada Cortina de Ferro. A maioria desses países transitou para a democracia e se manteve na órbita do Ocidente, a partir do governo de Jimmy Carter, o presidente norte-americano que adotou a defesa dos direitos humanos como vértice de sua política externa, no fim dos anos 1970.

No Brasil, o processo de democratização foi uma longa transição, iniciada nessa época, com a “anistia geral, ampla e recíproca” aprovada pelo Congresso em 1979, depois de muita negociação entre os militares e a oposição. A redemocratização do país foi concluída em 1985, quando os militares deixaram o poder, com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral e a convocação de uma Constituinte pelo presidente José Sarney, o vice que assumiu devido à morte do presidente eleito.

A chave desse processo foi, de um lado, a volta dos exilados e a libertação dos presos políticos; de outro, a impunidade dos torturadores e assassinos que, nos porões do regime militar, fizeram o serviço sujo para os generais que ocuparam o poder. Esse é nó górdio da democracia brasileira, assunto pacificado entre as Forças Armadas, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Constituição de 1988. Todas as tentativas de rever a Lei da Anistia fracassaram, inclusive nos governos Lula e Dilma; agora, com sinal trocado, para o bem da democracia, não deve ser diferente.

Ricardo Noblat: Família como negócio

- Blog do Noblat / Veja

A ajuda de Trump a seu sub
Deve ser confortável além de divertido dizer o que passa pela cabeça sem assumir nenhum compromisso com o que disser. Sem precisar explicar por que antes havia dito o contrário. E, se ainda não tiver dito, sem preocupação alguma com o que dirá no futuro que possa soar como incoerência.

Penso que só as crianças em sua inocência podem desfrutar de semelhante condição. Ou os adultos que não amadureceram. Ou os que vieram ao mundo só para confundir (alô, alô, seu Chacrinha!). Ou ainda gente do tipo Jair Bolsonaro que se vê de repente incumbida de uma missão para a qual jamais se preparou.

Incumbido de uma missão que nunca teve no seu radar. No radar do capitão, depois de 30 anos como deputado do baixo clero, estava o plano de disputar a presidência da República para apenas garantir a eleição ou reeleição dos seus três garotos, sem se esquecer do quarto, por ora em fase de treinamento intensivo.

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” foi um bom slogan de campanha, longe, porém, de refletir o que de fato importa a Bolsonaro, o que sempre importou. Acima de tudo para ele está o empreendimento comercial da sua família, uma mistura de política com negócios. Vá lá que Deus possa ficar acima de todos.

Quando chegará o dia de se conhecer a lista por enquanto incompleta de parentes do capitão, e dos parentes dos parentes dele que Bolsonaro e seus filhos empregaram sem nenhum pudor em gabinetes da Câmara dos Deputados, da Assembleia Legislativa do Rio e da Câmara Municipal do Rio? O povo tem direito a saber.

João Cabral de Melo Neto: Poema da desintoxicação.

Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo.
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.

Alcione: Corrente de Aço

terça-feira, 30 de julho de 2019

Opinião do dia: Jürgen Habermas*

Os direitos humanos formam uma utopia realista na medida em que não mais projetam a imagem decalcada da utopia social de uma felicidade coletiva; antes, eles ancoram o próprio objetivo ideal de uma sociedade justa nas instituições de um Estado constitucional.

Naturalmente, essa ideia transcendente de justiça introduz uma tensão problemática no interior de uma sociedade política e social. Independentemente da força meramente simbólica dos direitos fundamentais em muitas das democracias de fachada da América do Sul e de outros lugares, na política dos direitos humanos das Nações Unidas revela-se a contradição entre a ampliação da retórica dos direitos humanos , de um lado, e seu mau uso como meio de legitimação para as políticas de poder usuais, de outro.

*Jürgen Habermas (Düsseldorf, 1929) é um filósofo e sociólogo alemão, ‘Sobre a constituição da Europa’, pp. 31-2, Editora Unesp, 2012.

Luiz Carlos Azedo: O terceiro turno

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Cada declaração polêmica de Bolsonaro provoca uma onda de protestos na sociedade civil e no exterior, além de frustrar eleitores que esperavam um presidente mais focado nos problemas do país”

O presidente Jair Bolsonaro, ao insistir numa agenda motivada por razões ideológicas e religiosas, mas descolada dos problemas prioritários da população, está protagonizando um debate político no qual sua imagem de presidente da República pode sair desgastada. Bolsonaro foi eleito sem debater suas ideias, ficou fora da campanha depois da facada que levou em Juiz de Fora (MG). A partir daquele trágico episódio, o “mito” se tornou imbatível, mesmo num leito de hospital. Afora os seguidores de carteirinha, porém, a maioria dos seus eleitores não conhecia as ideias polêmicas do presidente da República sobre assuntos em há um amplo consenso na sociedade, como a questão do desmatamento, por exemplo.

Com o Congresso Nacional e o Judiciário em recesso, Bolsonaro ficou absoluto na cena política, sem que nenhuma outra personalidade disputasse espaço na mídia. Nesse período, no jargão jornalístico, florescem as “flores do recesso”, temas que tomam conta do noticiário político e morrem quando o Parlamento e os tribunais voltam a funcionar. Ocupava a cena a divulgação de conversas entre o ministro da Justiça, Sérgio Moro, quando era juiz em Curitiba, e os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, pelo site The Intercept Brasil, do jornalista americano Green Grenwald.

Essa seria a mais exuberante “flor do recesso”, mas o presidente Bolsonaro irrompeu em cena, diariamente, com declarações e atitudes polêmicas a cada entrevista ou tuitada. Ontem, Bolsonaro afirmou em uma rede social que o estudante de direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi morto pelo “grupo terrorista” da Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos militares, uma afirmação no mínimo leviana. Segundo a Comissão da Verdade, Santa Cruz foi morto por agentes dos órgãos de segurança do regime militar.

Mais cedo, ao criticar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do estudante desaparecido, Bolsonaro havia chocado a opinião pública com a seguinte declaração: “Um dia, se o presidente da OAB [Felipe Santa Cruz] quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”. Sua declaração gerou repulsa nos meios jurídicos e políticos. O governador de São Paulo, João Doria, por exemplo, filho de um parlamentar cassado e obrigado a se exilar, considerou a declaração inaceitável.

Bernardo Mello Franco: O presidente sem decoro

- O Globo

Ao ofender a memória de mais uma vítima da ditadura militar, Bolsonaro voltou a cruzar o limite da decência. A previsão de que ele respeitaria o cargo de presidente estavam furadas

Jair Bolsonaro nunca respeitou a memória das vítimas da ditadura. O capitão se projetou na política como porta-voz dos porões. Notabilizou-se por defender a tortura, insultar os mortos, mentir sobre fatos históricos.

Quando a Câmara homenageou Rubens Paiva, o então deputado cuspiu no busto diante da família. Quando a Justiça Federal ordenou a busca por restos mortais no Araguaia, ele disse que “quem procura osso é cachorro”.

Na votação do impeachment, Bolsonaro exaltou um torturador em rede nacional. Na campanha presidencial, ironizou o assassinato de Vladimir Herzog. “Suicídio acontece”, debochou.

O jornalista foi morto numa cela do DOI-Codi, e os militares alteraram a cena do crime para simular um enforcamento.

No fim de 2018, houve quem apostasse numa guinada do presidente rumo ao equilíbrio e à moderação. Ao assumir o poder, ele abandonaria o radicalismo e passaria a respeitara liturgia do cargo. Os fatos têm demonstra do que essa previsão era furada.

Quase todos os dias, o presidente tem disseminado ódio e preconceito. Ontem, ao ofendera memória de Fernando Santa Cruz, voltou a cruzar o limite da decência. O então estudante tinha 26 anos quando foi capturado pela repressão.

José Casado: Segredos e sussurros

- O Globo

Sobra inquietação em Brasília. Confirmam-se 976 linhas telefônicas grampeadas em três estados. É grande o número de vítimas, entre elas o presidente, juízes do Supremo e do STJ, líderes do Congresso, ministros, desembargadores, procuradores e policiais.

Mantém-se segredo sobre o conteúdo das mensagens roubadas. Fraudados de maneira tosca na precária segurança das redes nacionais de comunicações, todos agora estão com a sua correspondência privada sob manejo da Polícia Federal.

Pior: cópias desse acervo íntimo da cúpula da República estão com “fiéis depositários”, advertiram advogados de um dos acusados da rapina.

Curiosamente, até agora só uma preocupação foi exposta: a destruição de conteúdo sobre a Lava-Jato. A polícia exorcizou essa aflição partidária, remetendo a decisão à Justiça.

A investigação é sigilosa, mas já vazou. Nomes de alguns furtados foram sussurrados ao Ministério da Justiça, que nega ter violado segredos. Ninguém falou em investigar.

Silenciou-se, também, sobre as “fragilidades” —definição da perícia — das redes nacionais de comunicações. Elas confirmam o Brasil como área livre à espionagem, sem proteção da infraestrutura e das pessoas.

Merval Pereira: Coincidências de datas

- O Globo

Para variar, a semana foi de polêmicas para Bolsonaro, que, entre outras coisas, comentou que o jornalista Glenn Greenwald podia “pegar uma cana aqui mesmo”.

Referia-se à publicação, pelo site Intercept Brasil, das conversas hackeadas entre o então juiz Sergio Moro e o coordenador dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol.

Não se trata aqui de concordar com a atitude do site, que, ao divulgar os diálogos, o faz a conta-gotas, numa edição que busca interpretar as conversas e fazer ilações, sem colocá-los no contexto em que foram realizados. Nem com o viés claramente tendencioso em busca da anulação de processos para ajudar a libertar Lula.

Trata-se de defender a liberdade de expressão, pura e simplesmente. Se Glenn Greenwald não participou da operação de hackeamento, nem a encomendou, não há como “pegar uma cana”. Está protegido, como todos os jornalistas brasileiros, pela Constituição.

Mesmo que tenha pagado pela cessão do material, terá cometido no máximo um ato antiético. No entanto, a ligação política que surgiu com a revelação, confirmada por ela, de que Manuela D’Ávila, candidata a vice pelo PCdoB em 2018 na chapa do petista Fernando Haddad, foi a intermediária entre o hackeador e o Intercept Brasil reforça a hipótese de que a publicação desse material tem objetivos políticos.

Ricardo Noblat: O semeador de ódio

- Blog do Noblat / Veja

Uma crueldade para jamais ser esquecida
Cobra-se de Jair Bolsonaro, o ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, o que ele não tem para dar. Por exemplo: compostura e dignidade para o exercício do cargo de presidente da República, moderação para saber lidar com conflitos e a capacidade de compreender sentimentos e emoções dos outros.

Carente dessas e de outras qualidades que podem fazer de uma pessoa um ser humano melhor, Bolsonaro protagonizou, ontem, mais um episódio de vilania, estupidez e brutalidade que chocou até mesmo seus aliados políticos, calando pelo menos parte da manada de devotos que costuma defendê-lo nas redes sociais.

Ao queixar-se do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Fernando Santa Cruz, que impediu a Polícia Federal de ter acesso a dados confidenciais do advogado de defesa de Adélio Bispo, o esfaqueador de Juiz de Fora, Bolsonaro feriu um dos princípios do mundo civilizado de jamais se ofender a memória dos mortos.

Primeiro porque os mortos não podem se defender. Segundo porque sua descendência vive e não deve ser ofendia. Terceiro porque isso é uma coisa que não se faz e ponto. As religiões compartilham valores comuns como o perdão, a fé, a caridade e a paz. Batizado nas águas do Rio Jordão, Bolsonaro não passa de um religioso de araque.

Que seja levado às barras dos tribunais. A ninguém é dado revelar publicamente que sabe como um crime foi cometido e não se oferecer para depor. Ou não ser chamado a depor. Bolsonaro disse que sabe como o pai de Fernando Santa Cruz foi morto depois de preso por militares no Rio quando tinha 28 anos de idade.

A lei da anistia perdoou os autores de crimes de sangue, e também os que torturaram ou foram responsáveis pelo desaparecimento de corpos. Mas ela não aboliu o esquecimento nem o direito de se procurar saber o que aconteceu, e como aconteceu. É o que a família Santa Cruz tenta sem sucesso desde 1974.

Diante do estupor provocado pelo que disse, Bolsonaro sentiu-se forçado a dar explicações. Então fez mais uma de suas aparições ao vivo no Facebook, desta vez na cadeira de um cabelereiro que aparava suas madeixas, para garantir que o pai de Fernando Santa Cruz foi morto por seus companheiros de organização política.

No passado, ao defender a ditadura militar, seus assassinos e torturadores, Bolsonaro já havia dito que o pai de Santa Cruz deveria ter morrido embriagado em uma rua qualquer do Rio. Um documento secreto da Aeronáutica diz que ele foi morto por militares. Seu corpo, segundo uma testemunha, acabou incinerado.

À época, Marcelo, um irmão do morto, teve cassado o direito de estudar no Brasil. Rosalina, a irmã mais velha, foi presa, torturada à base de choques elétricos e sofreu um aborto provocado pela violência. Pontificava em São Paulo o coronel Brilhante Ulstra, um dos mais cruéis torturadores da ditadura que duraria 21 anos.

Sim, trata-se do mesmo coronel que Bolsonaro tanto faz questão de exaltar, autor de um livro cuja leitura ele recomenda a amigos e companheiros de ideias.

Roberto Romano*: Presidência subversiva

- O Estado de S.Paulo

O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado

O termo “subversão” foi muito usado no século 20. Nas grandes potências, subversivos eram os coletivos, grupos ou indivíduos que pusessem o Estado em perigo. Eles poderiam estar à direita ideológica ou à esquerda. Um inimigo na URSS era campeão democrático no Ocidente. No Brasil, desde Vargas a palavra indica os setores liberais que não aceitam regimes de exceção (foi o caso do jornal O Estado de S. Paulo, após as ditaduras mostrarem a face efetiva) e as correntes de esquerda, armadas ou não. Singularidades semânticas ajudaram a impor, em 1964, um Estado oposto ao direito. Para não o confundir com os golpes sofridos na América do Sul, os dirigentes nomeiam o seu movimento como “revolução”. O desmonte do Estado de Direito recebe nome certo – revolução –, mas unido ao complemento que o atenua: a revolução é “redentora” porque o Estado e a sociedade retornariam à lei e à ordem, sem desafios ao poder constituído.

“Subversão” já aparece em decreto de Henrique VIII contra os católicos que desejariam “restaurar o reinado usurpador e o poder do bispo de Roma”. A desobediência ao monarca significaria “subverter e derrubar os sacramentos da Santa Igreja e o poder e autoridade dos príncipes e magistrados” (P. Hughes e J. Larkin, Tudor Royal Proclamations). Na Alemanha surgem choques sangrentos, mesmo após os acordos sobre ocuius regio, eius religio. Na França, cidadelas são concedidas aos protestantes. Mas as tensões aumentam até a Noite de São Bartolomeu. O rei, pouco seguro no poder, arma o ataque. O evento é elogiado por Gabriel Naudé como um bom golpe de Estado: o medo da violência real leva o s beligerantes à obediência. Governos prudentes não solapam a própria autoridade, pois ela depende de um cálculo complexo. Nenhuma ditadura unipessoal, nem sequer a de César, permanece incólume mesmo tendo apoio cúmplice do Parlamento ou Justiça.

O atual presidente da República brasileira ignora o pretérito que define o Estado. O primeiro valor de toda forma estatal reside na hierarquia de funções e autoridade no emprego de pelo menos três monopólios: o da força, da norma jurídica, dos impostos. A partir daí seguem as prerrogativas do poder na vida pública, da educação à saúde, desta à soberania sobre a sociedade civil. O presidente minou a autoridade dos encarregados pela força, os generais que aceitaram integrar o seu governo. Elias Canetti fornece uma chave para a compreensão das Forças Armadas: a sentinela exemplifica a constituição psíquica do soldado. Os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor e a inquietude, são nele reprimidos. Todo ato seu vem de uma ordem. O momento vital no militar é a postura atenta diante do superior. Para ele, a ordem tem valor supremo. O uniforme evidencia a perfeita igualdade de todos na obediência às ordens.

Eliane Cantanhêde: Réquiem para os índios

- O Estado de S. Paulo

Bolsonaro critica o interesse da Europa na Amazônia, mas abre mineração em reservas aos EUA

O mesmo presidente Jair Bolsonaro que definiu o Brasil como “uma virgem que todo tarado quer” é o que, agora, confirma publicamente sua disposição de fazer parcerias nos Estados Unidos para explorar minério em terras indígenas da Amazônia, particularmente a ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. O governo vai entregar a virgem para os tarados? Ou os tarados são só os países europeus?

O discurso de Bolsonaro é um para a Europa, outro muito diferente para os EUA. Ao falar sobre meio ambiente, desmatamento da Amazônia, reservas ecológicas, terras indígenas e quilombolas, ele inevitavelmente mistura um tom agressivo com pitadas de sarcasmo: o diretor do Inpe é mancomunado com ONGs estrangeiras e os europeus só defendem a preservação da Amazônia para depois explorá-la. “Na cabeça dos europeus, a Amazônia não é do Brasil.”

É curioso que, nos tempos dos militares no poder, o temor do olho gordo sobre a maior floresta tropical e a maior biodiversidade do mundo não era por causa dos europeus, ou, pelo menos, não era principalmente por causa deles, mas, sim, dos irmãos do Norte, dos americanos. Na “nova era” de Bolsonaro, o tarado mudou.

Ranier Bragon: A sorte está lançada

- Folha de S. Paulo

A resposta às aberrações presidenciais mostrará qual país sairá dessa experiência

No ano 49 antes de Cristo, Júlio César violou as leis romanas e cruzou o rio Rubicão com o seu exército, dando início à guerra e à expressão que se consagrou como sinônimo de decisão que não tem volta.

Mais de 2.000 anos depois, o Brasil atravessou o seu Rubicão particular ao eleger presidente uma pessoa com o preparo, as propostas, o passado, o nível intelectual, a moral e o humanismo de Jair Bolsonaro.

O regime democrático que permitiu tal decisão dará uma extraordinária demonstração de solidez e perpetuidade se suas instituições republicanas não só resistirem, mas derem respostas firmes e destemidas ao que estamos presenciando. Ou caminhará para o pântano do atraso e do obscurantismo. Não há volta.

Bolsonaro testa os limites. A cada nova entrevista, novo ato, tateia até onde pode avançar a cruzada medievalista —e não importa se ela é involuntária ou calculada para animar fanáticos e criar cortinas de fumaça.

Joel Pinheiro da Fonseca: Moro deve continuar ministro?

- Folha de S. Paulo

Ex-juiz já teve luz própria, mas se tornou um mero apêndice de Bolsonaro

Quando Bolsonaro anunciou que Sergio Moro seria seu ministro da Justiça, fui um dos que celebraram. E por três motivos: o primeiro era que Moro institucionalizaria o know-how da Lava Jato no combate à corrupção e ao crime organizado.

O segundo era ver em Moro um contraponto e uma barreira a ideias malucas e desumanas do presidente: porte de armas generalizado, salvo-conduto para violência policial etc. Por fim, era alguém que não temeria apontar e combater a corrupção mesmo que ela viesse de dentro do governo ou da família presidencial.

Sete meses depois do início do governo, essas esperanças estão cada vez mais longínquas. Desde o início Moro já vinha se apequenando ao aceitar calado todas as vezes que o presidente o desautorizou. Os casos de corrupção na família do presidente têm sido esquecidos e abafados sem protestos do ministro da Justiça. Com a revelação das mensagensentre Moro e procuradores pelo The Intercept Brasil, Folha e outros veículos, a coisa só piorou.

Colocado contra a parede, reagiu de maneira desastrada. Ora minimizava o conteúdo, ora colocava dúvidas sobre a autenticidade. Agora tem tentado desviar a atenção para o crime do hacker.

Pablo Ortellado: Nacionalismo de fachada

- Folha de S. Paulo

Críticas de Bolsonaro às políticas para o setor audiovisual mostram que seu nacionalismo é de fachada

Estimulado por um estudo apócrifo que denunciava falta de fiscalização do uso de verba pública e o financiamento de filmes de temática indecente, o presidente Jair Bolsonaro iniciou uma cruzada contra as políticas para o setor audiovisual.

Em uma transmissão pelo Facebook na última quinta-feira (25) foi taxativo: "Vamos buscar a extinção da Ancine. Não tem nada que o poder público tenha que se meter em fazer filme. Que tenha uma empresa privada, sem problema nenhum. Mas o Estado vai deixar de patrocinar isso daí".

O audiovisual não é um setor econômico qualquer. Filmes são produtos sui generis porque são portadores de valores e visões de mundo e, desde que seu consumo se expandiu, no início do século 20, passaram a concorrer com o repertório simbólico das tradições populares e com o que era propagado pelo sistema educacional.

Por esse motivo, governos de diferentes orientações adotaram medidas regulatórias, como o financiamento à produção e as cotas de tela (percentuais de exibição mínimos para filmes nacionais) —a França adotou essas políticas nos anos 1910, e o Brasil, nos anos 1930.

Andrea Jubé: "Black Mirror" brasileiro

- Valor Econômico

Investigação dos 'hackers' vai parar na CPMI das 'fake news'

Trocaram os roteiristas. Após três anos de política nacional inspirada em "House of Cards" - lembrando que até a "The Economist" equiparou Eduardo Cunha a Frank Underwood - os atores políticos agora parecem transitar em um episódio de "Black Mirror", protagonizado por hackers de Araraquara (a terra do suco de laranja), incluindo um falsário e um ex-DJ, que movimentaram carteiras de criptomoedas e teriam invadido mais de mil telefones de autoridades das três esferas de poder.

A antológica série de ficção científica britânica explora situações comezinhas do cotidiano levadas ao extremo pela ação da tecnologia. Em um dos episódios, um hacker ameaça divulgar um vídeo íntimo de um adolescente. Acuado, o jovem tem de assaltar um banco e lutar pela vida em uma floresta contra outra vítima do criminoso, enquanto são filmados por um drone. Um roteiro quase ingênuo perto do enredo brasileiro.

Em meio à revelação de diálogos privados entre o hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, e o procurador da República Deltan Dallagnol - cujo teor sugere a eventual violação do princípio da imparcialidade no julgamento de processos da Lava-Jato - a investigação da Polícia Federal culminou na prisão de uma quadrilha de estelionatários do interior de São Paulo.

Um dos cenários é a cidade de Araraquarara, sede da Cutrale, que detém um terço do mercado mundial de suco de laranja. A fruta remete a outra investigação da Polícia Federal, que envolve o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio e o PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, em supostos desvios de recursos para financiamento de candidaturas falsas.

Daniela Chiaretti: Dano ambiental no Brasil já está em curso

- Valor Econômico

No país, nasce uma semente de resistência à agenda do governo

O Nobel de Economia Joseph E. Stiglitz disse em junho, em artigo no britânico "The Guardian", que a emergência climática é a "nossa Terceira Guerra Mundial." O professor da Universidade de Columbia foi claríssimo: "Nossas vidas, e a civilização como a conhecemos, estão em jogo". Nos últimos dois anos, os Estados Unidos perderam quase 2% do PIB em desastres relacionados ao clima - secas, inundações e incêndios florestais - e o custo para a saúde será de dezenas de bilhões de dólares, sem contar as mortes. O ex-economista-chefe do Banco Mundial se interessa pelo debate sobre como organizar recursos para o que muitos chamam de "Green New Deal", o grande esforço para enfrentar a mudança do clima que empresta o termo do programa que reergueu a economia americana depois da crise de 1929.

No Brasil, o governo Jair Bolsonaro está alheio a tudo isso. Corrigindo: desde antes da posse o presidente procura bloquear qualquer iniciativa nesse rumo, a menos que os interesses comerciais mandem dar verniz verde ao discurso. Talvez por isso não tenha anunciado a saída do Acordo de Paris, como ameaçou na campanha, ou a extinção do Ministério do Meio Ambiente (MMA), fundido com o da Agricultura, como no plano inicial. Mas, na prática, o dano está em curso.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem se dedicado a liberar a pesca de sardinha em Fernando de Noronha, visitar madeireiros em Rondônia e pensar se é viável criar mais gado e talvez plantar café no Acre. Nenhum pio sobre a liberação de agrotóxicos em ritmo alucinante, a pavimentação de estradas na Amazônia ou a integridade dos dados oficiais sobre o desmatamento feitos há décadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. O Brasil sob Bolsonaro parece ter dois ministros da Agricultura e nenhum do Meio Ambiente.

Documentos desmentem versão de Bolsonaro sobre morto pela ditadura

Presidente afirmou que pai do atual dirigente da OAB sofreu ‘justiçamento da esquerda’

Jussara Soares, André de Souza e Amanda Almeida / O Globo

BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro contrariou ontem os registros de documentos oficiais ao dizer que morreu em um “justiçamento da esquerda” o militante da Ação Popular (AP) Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Dois documentos do Estado brasileiro afirmam que ele foi morto pela ditadura em 1974. O presidente da OAB afirmou que Bolsonaro demonstra “traços de caráter graves em um governante: crueldade e falta de empatia’’. O governador de São Paulo, João Doria, e a ex-senadora Marina Silva condenaram a atitude de Bolsonaro.

Enquanto cortava o cabelo em transmissão ao vivo pela internet, o presidente Jair Bolsonaro afirmou ontem que não foram os militares que mataram pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Apesar de dois documentos oficiais atestarem o contrário, Bolsonaro disse que Fernando Santa Cruz, integrante do grupo Ação Popular (AP) e desaparecido durante a ditadura militar, teria sido assassinado em um “justiçamento da esquerda” (eliminação de pessoas consideradas traidoras).

Mais cedo, ao atacar o presidente da OAB, Bolsonaro havia afirmado que, se Santa Cruz quisesse, ele poderia dizer como seu pai desapareceu. A provocação fez com que Santa Cruz decidisse interpelar Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), após divulgar uma nota na qual chama Bolsonaro de “cruel” e “sem empatia”.

“O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia. É de se estranhar tal comportamento em um homem que se diz cristão. Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro — e debocha do assassinato de um jovem aos 26 anos”, disse Santa Cruz, em nota.

DEFESA DOS MILITARES
Bolsonaro disse que “é muito fácil culpar os militares por tudo o que acontece”:
— Não foram os militares que mataram ele não, tá?

Segundo Bolsonaro, integrantes da AP no Rio teriam sido responsáveis pelo desaparecimento de Fernando, que pertencia ao grupo em Recife.

— E o pessoal da AP do Rio de Janeiro ficou... primeiro, ficaram estupefatos, né? Como é que pode esse cara vir do Recife se encontrar conosco aqui? O contato não seria com ele, seria coma cúpula da Ação Popular do Recife. E eles resolveram sumir como pai do Santa Cruz. Essa é a informação que eu tive na época. É sobre esse episódio. Porque, qual é a tendência? “Se ele sabe, nós não podemos ser descobertos”... Existia essa guerra naquele momento —afirmou.

Doria chama de 'inaceitável' declaração de Bolsonaro sobre pai de presidente da OAB

Para governador de São Paulo, fala sobre desaparecimento na ditadura 'foi uma declaração infeliz'

Ivan Martínez-VargasDaniel Carvalho / Folha de S. Paulo

SÃO PAULO E BRASÍLIA - O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), criticou na tarde desta segunda-feira (29) a declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre o desaparecimento do pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz.

"É inaceitável que um presidente da República se manifeste da forma que se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Foi uma declaração infeliz", afirmou Doria, em evento de anúncio de investimentos de uma companhia de celulose no estado, no Palácio dos Bandeirantes.

"Não posso silenciar diante desse fato. Eu sou filho de um deputado federal cassado pelo golpe de 1964 e vivi o exílio com meu pai, que perdeu quase tudo na vida em 10 anos de exílio pela ditadura militar", disse o governador.

Ao reclamar sobre a atuação da OAB na investigação do caso de Adélio Bispo, autor do atentado à faca do qual foi alvo, Bolsonaro disse que poderia explicar ao presidente da entidade como o pai dele desapareceu durante a ditadura militar (1964-1985).

"Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto pra ele."

"Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro", disse Bolsonaro.

Santa Cruz respondeu que a fala do presidente da República demonstra "crueldade e falta de empatia".

Em nota, ele disse que, "goste ou não o presidente", o que une sua geração com a de seu pai é "o compromisso inarredável com a democracia", e "por ela estamos prontos aos maiores sacrifícios".

"O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demonstrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia", escreveu o presidente da OAB.

Nas redes sociais, o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes (DEM) mandou abraço e solidariedade a Santa Cruz e disse que "tudo tem um limite e ele foi ultrapassado".

Comissão de mortos e desaparecidos vai pedir explicações a Bolsonaro

Presidente disse ter informações sobre circunstâncias do desaparecimento de pai do presidente da OAB

Rubens Valente / Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - A Cemdp (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) vai pedir explicações ao presidente Jair Bolsonaro sobre ele ter dito que tem informações a respeito do desaparecimento do servidor público Fernando Santa Cruz, ocorrido no Rio em 1974, aos 26 anos de idade, e pai do atual presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz.

Segundo depoimentos do ex-analista do DOI-CODI, uma unidade da repressão militar, Marival Chaves, Fernando Santa Cruz foi assassinado, junto com outros ex-integrantes da organização de esquerda AP (Ação Popular), numa operação executada por conhecidos militares da repressão, como o então coronel do Exército Paulo Malhães (1937-2014), que assumiu ter conhecimento de diversos atos de tortura e assassinato de opositores políticos.

Nesta segunda-feira (29), Bolsonaro disse que tem informações sobre o que aconteceu com Santa Cruz, mas não explicou o quê.

"É muito grave essa declaração. Ele [Bolsonaro] está transformando um dever oficial, que é dar informações aos familiares, que ele já deveria ter cumprido, em uso político contra um crítico do seu governo", disse a presidente da Cemdp, a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga.

"É lamentável a declaração sob qualquer aspecto. Ele dizer que sabe e usar isso, é uma forma de reiterar a tortura dos familiares. E o mais grave, ele usa um golpe tão baixo contra uma pessoa que ele ataca politicamente", disse Eugênia.

A Cemdp vai reiterar os termos de um ofício encaminhado à Presidência da República no começo do governo Bolsonaro no qual as famílias assinalaram a necessidade de adoção urgente de ações, pelo chefe do Executivo, a fim de localizar mortos e desaparecidos e prestar informações aos familiares.

A carta foi resultado de um encontro nacional de familiares de mortos e desaparecidos. A Cemdp foi criada em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e hoje é vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Os familiares de Santa Cruz são historicamente dos mais engajados na longa batalha para obter informações sobre desaparecidos e mortos na ditadura militar (1964-1985). A mãe de Fernando, Elzita Santos Santa Cruz Oliveira, morreu em junho aos 104 anos de idade e ao longo dos últimos 45 anos não deixou de procurar informações sobre o destino dado ao corpo de seu filho, segundo Eugênia.

Em 10 dias, declarações de Bolsonaro têm preconceito, dados falsos e sarcasmo; relembre

Presidente atacou jornalistas, nordestinos e vítimas da ditadura militar

- Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Os últimos dez dias de Jair Bolsonaro (PSL) foram marcados por uma série de declarações recheadas de conteúdo falso e preconceituoso. Entre os alvos do presidente estão os jornalistas Miriam Leitão e Glenn Greenwald, os governadores nordestinos e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Nesta segunda (29), ele também ironizou o desaparecimento de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira durante a ditadura militar. Fernando era pai de Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil.

MIRIAM LEITÃO
"Ela estava indo para a guerrilha do Araguaia quando foi presa em Vitória. E depois [Míriam Leitão] conta um drama todo, mentiroso, que teria sido torturada, sofreu abuso etc. Mentira. Mentira."

Em 19 de julho, durante café da manhã com jornalistas
A jornalista Miriam Leitão foi presa, espancada, torturada e ameaçada de estupro pela ditadura militar em 1973, em Vitória. Na época, tinha 19 anos e estava grávida. Ela ficou ficou três meses detida.

Miriam nunca participou da luta armada nem esteve na guerrilha do Araguaia (a maioria dos guerrilheiros nunca foi encontrada). Na época em que foi presa, era jornalista da rádio Espírito Santo e militante do PC do B.

Miriam foi inocentada de todas as acusações que foram feitas contra ela pelo regime militar.

NORDESTINOS
“Daqueles governadores de paraíba, o pior é o do Maranhão [Flávio Dino, do PC do B]. Tem que ter nada com esse cara.”

Em 19 de julho, durante café da manhã com jornalistas
O termo “paraíba” é usado de forma pejorativa no Rio de Janeiro, estado onde Bolsonaro se radicou, para se referir a nordestinos. A expressão, quando usada para ofender uma pessoa ou um grupo, é considerada preconceituosa e racista e pode originar um processo judicial.

Os governadores nordestinos, que são de partidos da oposição, reagiram e cobraram explicações do presidente. Um dia depois, Bolsonaro afirmou que se referia apenas a Dino e a João Azevedo (PSB), governador da Paraíba.

FOME
“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente mesmo pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países pelo mundo”

Em 19 de julho, durante café da manhã com jornalistas
Embora a situação tenha melhorado nos últimos anos, a fome ainda é realidade para milhões de brasileiros.

Falas de Bolsonaro fogem ao decoro do cargo e engajam fiéis, dizem especialistas

Analistas não veem, porém, maiores consequências políticas ou jurídicas neste momento

Carolina Linhares / Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Recentes declarações com conteúdo falso e preconceituoso feitas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) fogem ao decoro do cargo, reforçam seu caráter antidemocrático e servem para manter engajado seu público de apoiadores fiéis, mas não devem gerar maiores consequências políticas ou jurídicas, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

“Com a certeza de que a reforma da Previdência vai ser aprovada, Bolsonaro fica mais à vontade em assumir o protagonismo em que ele se sai melhor, que é mais como comunicador do que como presidente”, diz Jairo Pimentel, cientista político da Fundação Getulio Vargas.

Nos últimos dez dias, Bolsonaro disse que a jornalista Miriam Leitão mentiu ao dizer que foi torturada, quando ela foi de fato torturada pela ditadura; chamou nordestinos de "paraíbas"; questionou dados sobre desmatamento; disse que o jornalista Glenn Greenwald poderia ser preso e não foi tudo.

Nesta segunda-feira (29), voltou à carga contra o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, dizendo saber como o pai dele teria desaparecidodurante a ditadura militar.

Politicamente, de acordo com especialistas, as declarações tendem a piorar a imagem do Brasil no exterior e, internamente, acirrar ainda mais um ambiente polarizado e radicalizado, mas não são suficientes para desencadear crise institucional grave.

“O Brasil já tem um nível alto de polarização. Então, quem apoia o presidente não vai se importar com essas falas e quem já se opõe não vai se opor mais por causa disso. Também não vai mudar o apoio que ele tem no Congresso”, afirma Bruno Castanho Silva, doutor em ciência política e coordenador do grupo de pesquisa Team Populism (Equipe Populismo).

“Bolsonaro alimenta o clima de polarização que qualquer presidente normal teria tentado reduzir”, diz Maria Hermínia Tavares, professora aposentada de ciência política da USP, pesquisadora do Cebrap e colunista da Folha.

“Ele é uma figura antidemocrática, e nós temos um paradoxo que é um sistema democrático presidido por um líder de extrema direita autoritário. Essa tensão permanece o tempo inteiro”, completa Tavares.

Do ponto de vista jurídico, o professor de direito da USP Gustavo Badaró diz que as declarações tangenciam o crime contra a honra, mas não cruzam essa fronteira. Para ele, Bolsonaro tampouco cometeu crime de responsabilidade.

“Ainda não me parece ter havido crime, o que não significa que tais declarações não sejam deploráveis, extremamente reprováveis, do ponto de vista político e moral e humano”, afirma Badaró.

Carolina de Paula, cientista política da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), aponta ser improvável que o Congresso em sua formação atual abra um processo de impeachment contra Bolsonaro. A pesquisadora lembra que “a tensão entre o presidente e os deputados, na hora do vamos ver, é controlada com as velhas práticas, como pagamento de emendas”.