quinta-feira, 18 de julho de 2019

‘A educação é um perigo para uma ditadura sutil’, diz Manuel Castells

‘Vocês estão vivendo um novo tipo de ditadura’, diz sociólogo Manuel Castells

Referência no estudo das redes, espanhol diz que disseminação de informações falsas conduz país ao totalitarismo e educação é única via para reverter o quadro

RIO — O Brasil está vivendo um novo tipo de ditadura, que tem como pilares a disseminação de notícias falsas e sucessivos ataques à Educação . Essa é a visão do espanhol Manuel Castells , um dos principais teóricos da comunicação e autor de livros como “A Sociedade em Rede” e “Galáxia da Internet”.

Em entrevista ao GLOBO, ele afirmou que o país só conseguirá evitar um futuro totalitário caso as escolas desempenhem bem seu papel . Nesse sentido, criticou o projeto do governo Bolsonaro de criar escolas militares, com foco na disciplina.

Castells diz ainda que os cidadãos que “querem estabelecer a verdade” precisam retomar o protagonismo nas redes.

O espanhol visitou o Rio para participar do seminário “Educação, Cultura e Tecnologia: Escola do Século XXI”, promovido pela Prefeitura de Niterói, e para palestrar sobre “Comunicação, política e democracia”, na FGV.

Paula Ferreira / - O Globo, 17/7/2019

• Hoje, no Brasil, há pessoas que dizem que o nazismo era de esquerda e que a terra é plana. Como isso é possível na era da informação?

Primeiro, as pessoas não funcionam racionalmente e sim a partir de emoções. As pesquisas mostram isso. As pessoas não veem o noticiário para se informar, mas para se confirmar. Não vão ler algo de outra orientação cultural, ideológica ou política. A segunda razão para esse comportamento é que vivemos em uma sociedade de informação desinformada. Temos mais informação do que nunca, mas a capacidade de processá-la e entendê-la depende da educação e ela, em geral, mas particularmente no Brasil, está em muito mau estado. E vai ficar pior, porque o próprio presidente acha que a educação não serve e vai cortar os investimentos na área.

• As universidades públicas e os professores brasileiros estão sob ataque por aqui?

Vocês estão vivendo um novo tipo de ditadura. As instituições estão preservadas, mas se manipulam tanto por poderes econômicos quanto ideológicos. O Brasil perdeu a influência da Igreja Católica, mas ganhou algo muito pior que são as igrejas evangélicas, para quem não importa a ciência e a educação, porque, quanto mais informadas estejam as pessoas, mais capacidade terão de resistir à doutrinação. O mesmo acontece com o presidente e com o regime que está instalando. Não se pode fazer uma ditadura antiga, que se imponha com o Exército, mas uma ditadura orwelliana, de ocupar as mentes. Esse tipo de ditadura só pode funcionar com um povo cada vez menos educado e mais submetido à manipulação ideológica.

• Como essa manipulação é exercida?

As redes sociais permitem a autonomia dos indivíduos, mas são usadas tanto pelos manipuladores como pelos jovens que tentam mudar o mundo. Foram desenvolvidas técnicas muito poderosas de desinformação, que incluem a utilização massiva de robôs, de forma que a construção coletiva do que ocorre na sociedade está totalmente dominada por movimentos totalitários. Por isso, atacam a educação, os professores, as universidades, as humanidades e as ciências sociais, que são áreas que nos permitem pensar. Tudo o que significa pensar é perigoso.

• O que as escolas brasileiras precisam ter para mudar a realidade do país?

Primeiro: recursos. Mesmo que haja mudanças na pedagogia, se não há recursos, se não pagam e não respeitam os professores e se não há menos alunos por classe, (não adianta). É preciso uma formação inicial melhor dos professores e também uma reciclagem contínua, sobretudo nas escolas mais longínquas do Brasil. Precisamos de bons professores imediatamente, não podemos esperar 20 anos para produzir os educadores que vão educar os jovens. E como fazer isso? Com educação virtual à distância. Precisamos reforçar as universidades virtuais. Estou na Universidade Aberta da Catalunha, que tem 65 mil estudantes 100% na internet, e funciona muito bem. Os estudantes de lá têm os mesmos diplomas que os demais e não há nenhuma diferença de qualidade e nem de mercado.

• Falando sobre a importância de valorizar o professor, atualmente o mais conhecido do país, Paulo Freire, está sendo alvo de ataques.

Isso significa que tudo que é criação de uma cidadania informada, educada e autônoma é um perigo para uma ditadura sutil, que precisa de pessoas que não sejam bem educadas, que sejam desinformadas e manipuláveis. Os três princípios de Paulo Freire são: aprender pela experiência — hoje em dia encontramos tudo na internet —, autonomia dos alunos para educar-se para buscar a informação e professores para guiá-los. Agora que temos tecnologia, não só internet, mas as conexões rápidas, é possível revolucionar facilmente a escola seguindo os princípios de Paulo Freire. Por que se ataca ele? Porque no mundo, e não só no Brasil, ele é um símbolo. Eu conheci Paulo Freire na Universidade Stanford (Estados Unidos) e lá ele era adorado, porque seus princípios são adaptados ao que é a nova sociedade: criar pessoas livres e autônomas, capazes de promover sua própria aprendizagem, guiadas por seus professores. Isso é muito perigoso para aqueles que querem manipular. Paulo Freire é liberdade, e a liberdade é agora o maior obstáculo que existe para que se siga desenvolvendo essa ditadura sutil que estão tentando impor ao Brasil.

• O governo anunciou recentemente que pretende criar mais de cem novas escolas militares. Qual sua opinião sobre essa iniciativa?

O que precisamos hoje é de pessoas educadas para pensar autonomamente, porque há uma quantidade de informação tão grande que precisamos ser autônomos em construir nossas opiniões e tomar decisões. As escolas não podem ser produtoras de robôs. (A formação de) gente que simplesmente obedece, segue o que está programado e aceita tudo é um princípio de militarização não só da escola, mas da sociedade. A grande questão do Brasil nesse momento é que, se não houver uma grande reação da sociedade contra essas medidas, o Brasil será transformado em uma sociedade totalitária.

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