domingo, 28 de julho de 2019

Desigualdade global: Editorial / Folha de S. Paulo

Antes subestimados, efeitos da concentração de renda se fazem notar na política

As últimas décadas de crescente integração de mercados globais têm sido justamente celebradas pelo inequívoco progresso tecnológico e material que beneficiou quase toda a humanidade. Alguns, no entanto, ficam para trás, e uns beneficiam-se mais que outros.

Dito de outra maneira, cresce a desigualdade social. E as consequências de tal fenômeno, por muito tempo subestimadas, se fazem notar no cenário político de países ricos e emergentes.

Um contingente inédito de pessoas deixou a pobreza extrema, tecnicamente definida pela tarefa de sobreviver com menos de US$ 1,90 (R$ 7) por dia. Segundo o Banco Mundial, superaram essa condição mais de um bilhão de indivíduos ao longo de anos de bonança iniciados em 1990.

Para os 10% da população do planeta que permanecem na miséria, contudo, o horizonte é turvo. Desde a crise econômica de 2009, a ascensão desacelera. Mais veloz é a concentração de dinheiro nas mãos do 0,001% mais rico do planeta, cuja renda saltou 235% em 40 anos.

A série Desigualdade Global, iniciada por esta Folha em 22 de julho, busca traduzir tais cifras em rostos, nomes e fatos observados em quatro continentes.

Nota-se, em particular no Ocidente, que entre centenas de milhões que abandonaram o fosso da pirâmide e dezenas de milhares cuja fortuna se multiplicou, as classes médias perderam participação na renda global.

O fenômeno não se deu de forma homogênea. Estudo de 2018 encabeçado pelo economista francês Thomas Piketty mostra, entretanto, que nenhuma região o evitou.

Mesmo na China, regime socialista que nos anos 1970 introduziu o capitalismo de controle estatal, o coeficiente Gini, medida da desigualdade em um país, saltou 0,15 ponto desde 1990 e chegou a 0,50 (sendo 0 a igualdade plena e 1 o extremo da concentração).

Na Europa, onde o Estado de bem-estar social está enraizado, a desigualdade é mais discreta do que em economias emergentes como as de Brasil, Índia e Oriente Médio —ou do que nos Estados Unidos, onde proteções sociais são tíbias. Ainda assim, ela se faz sentir.

Tal compressão da classe média abasteceu um sentimento antiglobalização naqueles que assistiram a renda e emprego submergirem.

Ele se faz ouvir nas ruas e nas urnas com a emergência de um discurso populista que promete soluções fáceis —e equivocadas.

Líderes que se utilizam dessa retórica espúria emergem em países distintos com loas a xenofobia, protecionismo, nacionalismo, militarismo e, não raro, obscurantismo. Ameaçam, assim, conquistas civilizatórias, em vez de enfrentar de fato as falhas da globalização.

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