quarta-feira, 3 de julho de 2019

Malu Delgado: Reeleição em Cristo

- Valor Econômico

Bolsonaro estará cada vez mais em palcos evangélicos

Os Policiais Militares em Cristo (PMs em Cristo, o segmento evangélico da corporação no Estado de São Paulo) especulam em publicações internas e nas redes sociais que o presidente Jair Bolsonaro poderá ser a grande atração do congresso anual dos militares cristãos evangélicos do Brasil, a ser realizado em Atibaia (SP), em outubro deste ano. O pastor Silas Malafaia será um dos palestrantes e o deputado federal Marco Feliciano é outro que deve prestigiar o encontro. A presença de Bolsonaro em palcos evangélicos será cada vez mais naturalizada, sobretudo depois que o presidente colocou a reeleição na agenda política aos seis meses de mandato. Este é, sem dúvida, um terreno no qual Bolsonaro se move com desenvoltura, especialmente ao conjugar o passado de militar com o futuro que projeta para 2022 e que, em certa medida, pode estar nas mãos do eleitor evangélico.

Bolsonaro costurou com precisão a proximidade com os neopentecostais ao longo dos últimos anos. Deixar escapar esse flerte tão precoce com a reeleição justamente no dia em que foi o primeiro presidente a colocar os pés na Marcha para Jesus em junho, na capital paulista, está longe de ser um descuido retórico do capitão. Na edição da Marcha em 2018, em plena campanha eleitoral, Bolsonaro apareceu ao vivo na Rede Gospel de Comunicação e insinuou o vaticínio: "Caso seja a vontade de Deus que eu venha a ocupar a cadeira presidencial, vocês evangélicos, cristãos, de todas as religiões, até mesmo quem não tem religião, participará (sic) de nosso governo para o bem de todos". Na edição de 2019, veio o agradecimento, em meio à multidão evangélica, com ele agora já na cadeira presidencial: "Vocês foram decisivos para mudar o destino desta pátria maravilhosa chamada Brasil".

Bem antes de a profecia de Bolsonaro se confirmar, o sociólogo Luiz Vicente Justino Jácomo pesquisou, em sua tese de mestrado, defendida em 2016 na USP, as convergências entre religião e militares, coincidentemente dois setores que, transpostos ao Congresso atual, sustentam o governo Bolsonaro (as bancadas da bíblia e da bala). Jácomo se debruçou sobre os efeitos das religiões e da religiosidade na Polícia Militar de São Paulo. Naquela época o sociólogo já apontava que os PMs em Cristo (Associação dos Policiais Militares do Estado de São Paulo) eram o maior grupo religioso da polícia "em abrangência, em influência e em ambição". Segundo o próprio grupo, há em São Paulo pelo menos 25 mil militares reformados e da ativa espalhados em 50 núcleos na capital e no interior.

Os PMs em Cristo faziam e fazem projeções estatísticas sobre o seu próprio exército com base no censo populacional do país. Estudiosos de sociologia da religião estimam que o censo de 2020 deverá apontar um país continental com 30% de evangélicos e 50% de católicos. Demógrafos preveem, sustenta Ronaldo de Almeida, professor de Antropologia da Unicamp e diretor do Cebrap, que em 2030 essas duas curvas vão se encontrar. O célere crescimento pentecostal no Brasil é um fenômeno que se replica também nas polícias, pelo menos em algumas regiões do país, como São Paulo. "Ele se expandem muito rapidamente, não param de abrir células, unidades, continuam a todo vapor", informa Jácomo, que ainda acompanha, hoje à distância, os PMs em Cristo.

O foco do estudo era São Paulo, mas o sociólogo esbarrou, obviamente, em fenômenos similares de outras regiões do país, como os "Caveiras de Cristo", policiais evangélicos que atuam no Bope, no Rio. Também é expressivo o contingente de PMs evangélicos no Distrito Federal, pontua Jácomo.

Bolsonaro mirou as bancadas da bíblia e da bala já na pré-campanha. Aos "da bíblia", observa o sociólogo, "acenou que acabou a bagunça, a depravação moral, as questões de gênero". Aos da bala, prometeu liberar o porte de armas - como se sabe bem, promessa que o presidente, numa sucessiva guerra de palavras em decretos inconstitucionais, tenta cumprir. Mas nem sempre os da bíblia vão estar ao lado dos da bala no Congresso. Já na polícia a história é diferente.

Os PMs de Cristo, mostrou Jácomo, surgiram na década de 90 com um discurso pacifista e apoiaram campanhas de desarmamento. Mas esse pensamento foi substituído, ao longo do tempo, por "um discurso calcado na legitimidade da autoridade policial perante Deus". Os ensinamentos e as mensagens religiosas foram adaptados ao microcosmo da corporação, explica o pesquisador, sendo propagada por pastores a ideia de que o militar exerce uma profissão "abençoada e legítima aos olhos de Deus".

Imaginar que a mensagem religiosa, especialmente a evangélica, possa neutralizar a violência cotidiana própria da corporação é um "engano sedutor", diz Jácomo. Entre os policiais religiosos, concluiu, só os evangélicos desenvolveram uma doutrina para justificar a atividade policial, tentando criar um elo entre a "autoridade policial e a autoridade divina". Significa dizer que se construiu a visão, entre os evangélicos, de que é possível ser policial e caminhar com Cristo, porque o militar cumpre uma missão de Deus e se opõe ao mal, mas pode ser obrigado a fazer o uso da força letal, causando mortes.

Fora das corporações, o que importa à bancada evangélica, aponta hoje o estudioso da sociologia das religiões, está "da cintura para baixo": impedir que as pautas sobre direitos reprodutivos, aborto, e questões de gênero avancem no Congresso e no STF. Bolsonaro não é evangélico, está no terceiro casamento e não raras vezes abusa de impropérios. Entre evangélicos mais tradicionais, discursos agressivos e preconceituosos do presidente seriam rejeitados e o vídeo do golden shower seria um escândalo. Mas as igrejas neopentecostais, observa Jácomo, fazem "poucas cobranças em relação a comportamentos dos fiéis e não se preocupam muito com o que você faz da porta da igreja para fora".

Esta talvez seja a chave para entender a sintonia deste público com Bolsonaro e a razão para que ele mantenha este eleitorado no bolso. Malafaia comprou a eleição de Bolsonaro "na baixa", lembra o sociólogo, e Edir Macedo "virou bolsonarista de última hora". O deputado Feliciano há algumas semanas era cotado para o ministério de Bolsonaro para coordenar a articulação política no Congresso. O parlamentar se vê como futuro vice no projeto de reeleição. Bolsonaro teve 11,5 milhões de votos a mais que Haddad entre evangélicos. Os PMs de Cristo certamente estavam neste eleitorado. Como o presidente sabe bem, a fé move montanhas.

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