sábado, 13 de julho de 2019

‘O bolsonarismo é uma ideologia do porão da ditadura’, afirma Celso Rocha de Barros

Gabriel Trigueiro / Revista Época

Cientista político identificado com a esquerda, ele defende o diálogo com economistas liberais, critica a postura do PT em relação às contas públicas e vê a questão ambiental como a “maior tragédia” do início de governo

18 perguntas para Barros

1. Como o senhor vê as relações entre o bolsonarismo e o lavajatismo antes e depois dos vazamentos dos diálogos entre o ex-juiz Sergio Moro e procuradores?

Sempre houve alguma intercessão entre lavajatismo e bolsonarismo, e essa confusão certamente ajudou Bolsonaro, um deputado medíocre do baixo clero, sem qualquer histórico de combate à corrupção, a se eleger. Mas sempre houve diferenças importantes. O lavajatismo tem origens em aspirações inteiramente legítimas de combate à corrupção, e o apoio popular à operação reflete os resultados obtidos no desvendamento dos escândalos. Sempre houve algo de messiânico e alguns abusos eram conhecidos, mas isso não quer dizer que os lavajatistas apoiassem Ustra, ou a ditadura militar, ou a tortura. O partido mais claramente identificado com a Lava Jato era a Rede Sustentabilidade, que não tinha nada de extremista, muito pelo contrário.

Moro sempre foi maior que Bolsonaro diante da opinião pública, o que claramente incomoda o presidente da República. Depois da Vaza Jato, Moro é que passou a precisar do apoio de Bolsonaro. Bolsonaro apoia Moro, mas faz questão de que esse apoio se dê em termos bolsonaristas: com ofensas à sexualidade de ( Glenn ) Greenwald, fake news etc. A ideia é queimar Moro com os moderados e trancá-lo no campo bolsonarista, levando a Lava Jato junto.

2. Como o senhor define o bolsonarismo ? “Populismo” dá conta desse fenômeno político e cultural?

A impressão é que talvez Bolsonaro seja um autoritário old school demais para ser um populista eficiente. Não me parece claro que o público tenha noção de quanto Jair Bolsonaro é radical: ele é muito mais parecido com o fascista francês Jean-Marie Le Pen do que com sua filha, a populista de direita Marine.

3. O senhor já se referiu ao governo Bolsonaro como um “regime de mobilização permanente”. Por quê?

Bolsonaro continua buscando a mobilização de sua base contra as instituições. É importante diferenciar o tipo de mobilização do bolsonarismo do ativismo social saudável. Uma sociedade civil forte impõe limites ao poder. A mobilização em favor do Poder Executivo contra o Legislativo e o Judiciário tenta retirar esses limites.

4. Quais os antecedentes históricos brasileiros do bolsonarismo?

Bolsonaro pertence à linhagem dos militares que não aceitaram a abertura democrática iniciada por Geisel. Por isso o culto a Brilhante Ustra: o bolsonarismo é uma ideologia do porão da ditadura, não é do general, não é do presidente militar. É a visão de mundo do sujeito que torturava comunistas e depois entrou para o esquadrão da morte, para garimpo ilegal, para jogo do bicho. Daí, também, o elogio às milícias. É sempre bom lembrar que Bolsonaro tentou colocar bomba no quartel por aumento salarial já nos anos 80, e que Geisel teve tempo de referir-se a ele como “mau militar”. Acho que a maior parte do público brasileiro não tem coragem de admitir quão radical é o presidente que elegemos.

5. Como o senhor analisa a tensão entre a base mais orgânica do bolsonarismo e a estrutura partidária do PSL?

Acho que é a luta entre quem quer fazer um partido de direita populista “normal” — que vence eleições, disputa cargos etc. — e quem quer construir um movimento autoritário. Boa parte dos deputados do PSL quer seguir uma carreira política normal, mas a ala olavista comandada por Eduardo Bolsonaro quer um movimento contra as instituições, contra a democracia.

6. Como o senhor vê a correlação de forças dentro dos maiores partidos do Congresso, o PT e o PSL?

O PT sempre teve uma divisão interna entre moderados e radicais, mas acho que a principal cisão atual é entre governadores e parlamentares, entre quem precisa de voto de fora dos 30% de esquerda para se eleger e quem não precisa. Não acho que a ênfase no “Lula Livre” seja o problema. Acho que o pessoal foca no “Lula Livre” justamente porque não consegue fechar uma posição do partido sobre outras questões, e “Lula Livre” é algo com que toda a militância concorda.

O PSL se tornou tão disfuncional que é até difícil de analisar. Quando a legenda saiu das urnas com uma bancada daquele tamanho, todo mundo achou que atrairia adesões e se tornaria um partido muito grande. Mas pouca gente quis entrar em uma legenda tão cheia de fanáticos ideológicos, que o próprio Bolsonaro parece disposto a abandonar.

7. O senhor é um intelectual associado à esquerda política, mas sempre adotou um registro moderado em suas colunas na Folha. Há alguém, entre os liberais e os conservadores que estão se opondo ao atual governo, com quem o senhor acha possível construir pontes e coalizões, ainda que circunstanciais?

É muito possível, e é obrigatório. Acho que há amplo espaço para conversar com os liberais, e muitos dos grandes economistas liberais brasileiros têm evidente aversão a Bolsonaro. Mesmo que não se chegue a um acordo com eles sobre todas as reformas, e não custa nada conversar sobre isso também, é inteiramente viável estabelecer uma convivência razoável em que todos se unam quando a liberdade brasileira estiver sob ataque. E não, não tem problema se cada um apoiar seu próprio candidato em 2022. No campo conservador é mais difícil, embora seja possível pensar em alguns nomes — o Reinaldo ( Azevedo ), o ( Carlos ) Andreazza. Mas a verdade é que a crise mostrou que falta conservadorismo político no Brasil, no sentido preciso do termo: durante toda a crise, faltou a visão de que quebrar os partidos e o sistema político era fácil, difícil era construir outra coisa no lugar. O que sobra é conservadorismo moral e extremismo populista.

8. O senhor acha que houve omissão da esquerda com relação a temas como reforma da Previdência e segurança pública e que isso acabou jogando esses temas no colo da direita?

Acho que sim. Não se deve transigir em nada na defesa dos direitos humanos, mas é preciso discutir policiamento, repressão ao crime. O trabalhador brasileiro cujo celular é roubado na Central do Brasil e vai ter de continuar pagando as prestações do aparelho vai acabar votando na extrema-direita se a esquerda não tiver uma proposta para impedir que isso ocorra de novo.

9. O senhor tem sido muito crítico em relação aos programas econômicos do PT. O que um programa progressista e responsável deveria defender?

Partidos de esquerda têm de ser ambientes em que os economistas se sintam seguros para dizer, de vez em quando, “não tem dinheiro para isso”. Pegue o exemplo do Nelson Barbosa: nos últimos anos, ele vem propondo reformas que procurem conciliar equilíbrio fiscal com preocupação com os pobres. Você pode gostar ou não das propostas dele, mas é algo que ele vem tentando. Aí, quando sai o programa do PT para a eleição de 2018, não tem quase nada das propostas do Nelson. 

À exceção de um trecho bem tímido sobre Previdência, não havia quase nada que demonstrasse preocupação com o estado das contas públicas. Isso era contrário, inclusive, ao que fizeram as boas administrações petistas. A gestão Haddad na prefeitura de São Paulo foi fiscalmente responsável, como a de Erundina já havia sido. É possível que isso seja efeito um pouco das ideias de esquerda dos anos 60, que, para se distanciar do marxismo ortodoxo, que era ultraeconomicista, acabou falando mais de política e cultura do que de economia.

10. Há alguma hipótese plausível de uma força da esquerda brasileira se mostrar uma alternativa viável ao eleitorado evangélico a médio ou longo prazo?

Sem dúvida. Em primeiro lugar, porque os evangélicos não são só evangélicos. São trabalhadores brasileiros que têm seus próprios interesses e desejam políticas públicas que a esquerda sempre defendeu, como saúde e educação públicas. Mas também é possível que os fiéis se tornem mais tolerantes à medida que fique claro, por exemplo, que o casamento gay é uma afirmação da família, não o contrário. Agora, é claro que o respeito à fé de todos os fiéis deve ser absoluto.

11. Quais lições de sua formação de esquerda lhe parecem úteis na interpretação da política contemporânea? E quais lhe soam descartáveis ou pelo menos datadas e inadequadas?

Houve debates que a esquerda ganhou, como o da desigualdade: é difícil encontrar um sujeito sóbrio que não reconheça que o Estado deve evitar que o fosso entre pobres e ricos se torne imenso e intransponível. Na última eleição, quase todos os candidatos defendiam taxar juros e dividendos. Não era assim, foi a esquerda que levou essa briga adiante. Por outro lado, a esquerda precisa deixar de considerar que toda solução estatista é melhor que a solução pró-mercado. Em política econômica, ou na discussão sobre privatização, vale o que funcionar. Às vezes vai ser o Estado, às vezes vai ser o mercado, e o que interessa é que os objetivos da sociedade sejam mais bem atingidos.

12. Como o senhor enxerga a, por falta de nome melhor, “virada identitária” de parte significativa da esquerda nacional?

Acho ótima. Conquistas como o casamento igualitário e os direitos das mulheres estão entre as grandes realizações humanas das últimas décadas. Feminismo, movimento LGBT, movimentos antirracistas, tudo isso é parte da grande luta pela liberdade. Todos esses movimentos têm realizações imensas. Eu sou muito menos machista, racista e homofóbico do que já fui graças a eles, e só tenho a agradecer. Eu gosto de ficar mais inteligente. Talvez falte um pouco de prudência na hora de criticar o cidadão comum que comete um deslize, e às vezes há excessos de patrulha. Ninguém é perfeito, cuidado sempre é necessário. Mas o saldo da coisa toda é amplamente, esmagadoramente positivo. E, claro, não há por que desistir das pautas tradicionais do combate à desigualdade econômica.

13. Como o senhor avalia a atuação política dos intelectuais de esquerda ligados a universidades e think tanks ao longo dos anos Lula e Dilma?

Acho que faltou criticar e revisar programas enquanto dava tempo. Se intelectuais de esquerda tivessem criticado a Nova Matriz Econômica, por exemplo, isso teria tido muito mais peso do que as críticas dos economistas tucanos. E mesmo nas ideias de esquerda já havia muita coisa que tinha de ter sido revisada antes mesmo da chegada à Presidência.

Houve exceções, é claro, mas não conseguiram se fazer ouvir.

14. Existe algum “ponto cego” na produção científica atual sobre a situação política brasileira?

Sem sombra de dúvida, a crise de 2008. Foi o fato mais importante do mundo na última década: a economia piorou, a esquerda perdeu a fé no liberalismo, a direita se tornou antiglobalista. E aqui no Brasil a gente discute as coisas como se a crise não tivesse tido impacto nenhum sobre nós, mesmo a economia tendo piorado, a esquerda tendo perdido a fé no liberalismo e a direita tendo se tornado antiglobalista.

15. Quais os principais obstáculos de longo prazo para as principais forças políticas brasileiras?

São o mesmo problema, mas visto de ângulos diferentes. Para a esquerda, o desafio é pensar um programa de redistribuição de renda que seja compatível com um Estado falido e um país que não cresce direito há 40 anos. Para a direita liberal, o desafio é como implementar reformas liberais que podem produzir mais desigualdade em um país que já de saída é um dos mais desiguais do mundo.

16. Como o senhor analisa o papel da imprensa no atual cenário político nacional?

Acho que boa parte da imprensa tem viés de centro-direita porque o público que paga por notícia tem esse perfil. Isso explica a ênfase nos escândalos petistas, mas a verdade é que as denúncias não pararam depois que o PT caiu. Os escândalos de Temer e Bolsonaro foram denunciados, e continuam sendo. Por isso a guerra de Bolsonaro contra a imprensa: os jornalistas sérios, inclusive os de direita, continuam denunciando seus escândalos.

17. Há alguns anos o STF não era uma instância muito permeável ao escrutínio da sociedade civil e se mantinha razoavelmente distante das discussões públicas mais imediatas. Como foi o processo de mudança desse quadro e como o senhor descreveria a atual correlação de forças no Supremo?

Sob um certo aspecto, é ótimo que o STF tenha se tornado mais transparente. Mas parece claro que, em mais de um momento nos últimos anos, a Corte decidiu exclusivamente por pressão da opinião pública, o que é ruim. Quando as democracias instituem Supremas Cortes, é justamente para que as flutuações da opinião pública não comprometam a sobrevivência de longo prazo do estado de direito.

18. Qual a mudança mais drástica feita pelo atual governo na estrutura da burocracia federal brasileira? Quais são as implicações?

De longe, a maior tragédia é a preservação ambiental. Não foi sequer necessário mudar lei, foi só deixar claro que o Ministério do Meio Ambiente não fiscalizaria mais nada. Nessas áreas regulatórias em que Bolsonaro não depende de aprovação do Congresso, os danos vão ser enormes.

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