segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Cacá Diegues || O amor pelo que somos

- O Globo

O Brasil sempre foi um país sem programas refletidos para um futuro próximo ou distante

É através da cultura que amamos as regiões do globo que nos interessam. Ela nos faz amar as nações e sua história, seu passado e sua memória. Amamos a Grécia Antiga, por exemplo, por causa de seus filósofos e poetas. Por causa de Aristóteles, que ensinou a Humanidade Ocidental a pensar. Por causa de Homero, que nem sabemos se de fato existiu. E de sua obra, possivelmente recriada por cantores diversos e anônimos. Por causa da “Ilíada”, que Alexandre carregava debaixo do travesseiro enquanto conquistava o mundo. É isso que nos faz amar a Grécia e refletir sobre ela, como um mistério que estamos sempre tentando desvendar.

Só amando o que somos, podemos reconhecer valor em nós mesmos. Mas penso que nunca soubemos o que somos. Somos o Brasil que se formou a partir de 1500, tendo aventureiros e desterrados portugueses como colonizadores? Ou somos o Brasil dos imperadores tentando nos dar um caráter nacional, que nunca chegou a se formar? Ou o Brasil das três Repúblicas de nossa experiência política moderna, em crise permanente? Será justo definirmo-nos a partir do que nossas elites quiseram de nós, independente do que pensava, curtia ou fazia a população sem poder? E essa população sem poder sabia o que era, exercia consciente o direito de ser o que desejava ser?

O Brasil sempre foi um país sem programas refletidos para um futuro próximo ou distante. Isso talvez seja o que sempre produziu nosso encanto junto a viajantes e leitores que buscam um projeto de humanidade, que procuram uma resposta para seu mal-estar sobre eles mesmos. Esse Brasil-pandeiro sempre nos serviu de álibi para dormirmos em berço esplêndido, sem receio de acordarmos vivendo uma tragédia. Um país abençoado pela graça, jamais conhecerá a desgraça, seja ela de que natureza for.

Não costumamos fazer planos, projetos que se estendam no tempo. Sempre nos satisfizemos e nos regozijamos quando identificados como o país do carnaval e do futebol, o país do sorriso ao sol e da cordialidade em qualquer circunstância. A bela canção que nos afirmava abençoados por Deus e bonitos por natureza, que cantamos todos juntos, sem distinção de ideologia ou de posição politica, fora criada e difundida, com gigantesco sucesso popular, no coração da noite sombria da ditadura militar, responsável pelo que vivíamos com dor.

Mesmo sem saber quem somos, inventamos um país diferente dos outros, através de nossos pensadores mais sábios e criativos. Como Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Roberto DaMatta, e tantos outros criadores de um Brasil divergente que espera se redimir na sombra do que é, no detalhe do que quase foi. Na poesia de nossos defeitos, como está na abertura de “Retrato do Brasil”, o livro de Paulo Prado: “Numa terra radiosa, vive um povo triste”.

Como reação ao concerto do que ficou consagrado, muitas vezes nadamos na direção contrária à da onda dominante. Desde que o presidente declarou que patriota brasileiro, em defesa do meio ambiente, deve fazer cocô dia sim e dia não, desde então tenho feito cocô duas vezes por dia. Não se trata de prejuízo biológico ou desafio ideológico, mas do simples prazer de pensar e fazer por mim mesmo. Sem atrapalhar, como princípio, a vida de ninguém. Essa é a maior satisfação que um ser humano pode ter, o que o consagra como ser humano.

A nação que mais amamos será sempre aquela em que manifestamos nossos pensamentos, mesmo os mais pobres, fúteis e inúteis, sem medo de retaliação dos poderosos e da eventual maioria. Com a certeza de que estamos cumprindo um dever e não precisamos explicar, nem entender porquê.

No julgamento de nós mesmos, a síndrome brasileira por excelência é a da autodesvalorização, o fanático desejo de destruir o que for nosso. Sem admitir que não existe o “nosso” e o “deles”, damos a vida pelo desmonte de nossas virtudes. Diferentes dos povos que têm o hábito de se autoexaltar, somos os primeiros a desfigurar nossas aparentes vantagens. Há sempre uma versão maliciosa para cada atrativo virtuoso que, por ventura, descubram em nós. Somos obcecados em destruir com estardalhaço o que tentam, com boa vontade, construir sobre nós.

Minha filha Flora, jovem cheia de sabedoria e talento, me dizia que a gente só consegue amar o lugar em que dorme tranquilo e sem sobressaltos. E onde acorda sereno, com os olhos voltados para a luz.

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