sexta-feira, 23 de agosto de 2019

César Felício || A grande família

- Valor Econômico

Presidente paga o preço que for em nome do clã

O tiro na cara da Polícia Federal que foi disparado pelo presidente Jair Bolsonaro torna nítida uma tendência importante. A de que parte dele a iniciativa de neutralizar o ministro Sergio Moro. O ex-magistrado pode até continuar no governo, como uma sombra do que já foi, um retrato na parede, mas este não é um cenário provável. Em São Paulo, já há pessoas ligadas ao presidente que se apresentam como prováveis sucessores do atual titular da Justiça.

O ministro enfrenta uma coalizão que envolve os Três Poderes. E que se consubstancia na retirada do Coaf de suas mãos, na paralisação de investigações por ordem judicial, no retardo e desfiguração de projetos encaminhados ao Congresso. A Lava-Jato e tudo que ela simboliza desestabilizou o sistema político, que há anos procura fórmula para dar o troco. Para quem não havia lido os sinais, o presidente veio a público dar uma ajuda, ao justificar a interferência na PF: "Se eu trocar o diretor-geral hoje, qual o problema?." O presidente ressalvou que não pretende trocar o delegado Maurício Valeixo, mas o recado está dado sobre quem manda.

Um sinal definitivo poderá ser dado na próxima semana. Bolsonaro irá decidir se veta integralmente o projeto de lei sobre abuso de autoridade, se o sanciona ou, o que é mais provável, se faz vetos pontuais. Manifestações de rua convocadas para este fim de semana podem influenciar a decisão. Ou Moro sai morto desta contenda, ou ganha uma sobrevida precária. Se morrer, estreita a base do bolsonarismo, já que há uma franja da opinião pública que está com o presidente porque ele trouxe para o seu projeto um ícone da luta contra a corrupção.

O ministro está na alça de mira do presidente, mas são muitos os alvos de Bolsonaro, tornados explícitos depois da aprovação da reforma da Previdência na Câmara, no começo de julho. Por questões absolutamente conectadas às desventuras de Moro, o presidente também avança contra a Receita Federal. E da mesma forma sinalizou que pretende ignorar a votação interna do Ministério Público para a Procuradoria-Geral da República. Em relação à imprensa, não só manteve a ofensiva verbal como começou a tomar providências concretas para tentar inviabilizá-la como negócio. O presidente ainda partiu para a agressão contra o Inpe, ambientalistas, ONGs, governadores, França, Alemanha e Noruega, o favorito na eleição presidencial argentina, a Ancine, a Anvisa e movimentos sociais.

Há um propósito claro e maior em grande parte destas investidas. O Brasil já teve presidentes que representavam estruturas partidárias, ou grupos oligárquicos, ou as Forças Armadas, ou potências internacionais. No caso de Bolsonaro, não há nada disso. Os principais aliados do presidente são seus familiares e qualquer projeto de poder seu envolverá a preservação e o fortalecimento da dinastia. A lógica é tribal, é de clã.

Neste sentido é preciso pagar o preço que for para garantir a Eduardo a embaixada nos Estados Unidos, blindar o mandato de Flávio e deixar porta aberta ao protagonismo digital de Carlos. Ao longo do mandato houve ainda perseguição contra fiscais do Ibama, combate à fiscalização trabalhista e retirada dos radares de estrada.

Tudo, de uma forma ou outra, está relacionado às idiossincrasias da família presidencial, seja as vividas na atualidade ou as que guardam relação com um passado distante, dos hambúrgueres fritados no Maine, das pescarias em Angra ou da convicção formada na juventude de que a repressão do regime militar não só era o que tinha que ser feito, como seus artífices deveriam ser tratados como heróis. O horizonte do presidente é esse. Seu projeto necessariamente passa pela reeleição e, quem sabe, por alguma forma de ser sucedido por um de seus filhos. A legislação não é favorável a esta tese, mas a história eleitoral brasileira é a história dos casuísmos. Nem os militares, nem um partido, nem o empresariado representam e merecem o apoio da primeira família.

Privatização
O anúncio de privatizações, de certa forma, reposiciona o governo federal - mais do que Bolsonaro, Paulo Guedes - na disputa com a cúpula do Congresso por protagonismo na condução da política econômica. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que dependerá de aval legislativo a venda de estatais que não sejam subsidiárias. Caberá a Guedes negociar com Maia e Alcolumbre as vendas dos Correios, Eletrobras e as companhias de docas.

No caso da Petrobras, como o presidente alertou logo na manhã de ontem, será necessário convencer primeiro o Palácio do Planalto. O ministro falará sobre a venda da empresa e Bolsonaro irá cobrar por que o preço do óleo diesel não está diminuindo do modo como seus adeptos nas redes sociais desejariam.

Em fase de distanciamento do Palácio do Planalto, o governador João Doria será beneficiado por uma espécie de vento de cauda. O tucano também precisa de autorização legislativa, no caso da Assembleia, para venda da sua estatal mais preciosa a Sabesp, que por sua vez está pendente da votação do novo marco regulatório do saneamento no Congresso.

Por enquanto o governador encaminhou e fez aprovar na Assembleia iniciativas menos significativas, como a extinção das estatais Codasp, CPOS e Emplasa e a fusão da Imprensa Oficial com a Prodesp.

Doria está na dependência, portanto, de um duplo aval de parlamentares, em Brasília e em São Paulo. A desestatização da Ceagesp, que foi perdida pelo governo estadual para o federal em 1997, no contexto da crise que afetou a administração do então governador Mário Covas, o beneficia de forma indireta, já que destrava o projeto de mudar a sua localização. Não à toa Doria festejou a iniciativa e poderá ser um aliado do Planalto na tramitação do pacote no Congresso.

Doria
A derrota de Doria na Executiva Nacional do PSDB, que decidiu pela permanência do deputado Aécio Neves na sigla, tem múltiplas dimensões e mostra a dificuldade já conhecida de Doria de compor internamente. Conviver com Aécio no partido naturalmente será um ônus para quem pretende se apresentar como símbolo de renovação, mas perder da maneira como se perdeu, por esmagadora maioria, denota isolamento. Pensava-se que Doria iria dar as cartas no partido. Está quase transformado em um dissidente. Sobrou na posição paulista disposição para ficar bem na opinião pública, mas faltou diálogo e costura.

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