quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Cristiano Romero: A difícil arte de cumprir a meta fiscal

- Valor Econômico

Está mais difícil cumprir déficit primário do que o teto

Quando o governo Temer propôs e o Congresso Nacional aprovou, em tempo recorde, a instituição de um teto constitucional para os gastos da União, nem o mais otimista dos viventes da Ilha de Vera Cruz acreditou na efetividade da medida, radical por definição. Não havia, de fato, por que acreditar. Do início da década de 1990 a 2015, o gasto corrente federal cresceu, em média, 6% ao ano em termos reais (acima da variação da inflação). Entre 2008 e 2015, o ritmo aumentou de forma exponencial - salto de 50%, já descontada a inflação, enquanto as receitas avançaram 15%; a diferença de ritmo fez a dívida explodir, levando o país a perder em 2015 o selo de bom pagador conquistado sete anos antes.

O teto constitucional de gastos estancou drasticamente o gasto real, simplesmente proibindo que isso ocorra, sob pena de as autoridades serem obrigadas a compensar o desrespeito ao teto com suspensão de reajustes salariais para o funcionalismo e mesmo da correção anual das aposentadorias, além da realização de concursos públicos. O teto entrou em vigor em 2017 e, apesar de todo o mau agouro, tem sido rigorosamente cumprido. Há analistas, inclusive, que atribuem ao teto uma das razões para a lenta e exasperante recuperação da economia brasileira, após seis longos anos de recessão (2014-2016) e baixo crescimento (2017-2019).

A adoção do teto deveria ter estimulado a sociedade, por meio do Congresso e de movimentos civis representativos, a redefinir as prioridades do Estado brasileiro, uma vez que, finalmente, entendemos que os recursos públicos são escassos, não só aqui mas em qualquer lugar do planeta.

Não, esse debate não se deu e dificilmente ocorrerá - nesse aspecto, o teto não mudou hábitos e costumes em Brasília: os donos do poder repartem cem quinhões do erário com o mesmo ardil e apetite com que dividem dez, deixando de fora da partilha quem mais necessita de um tostão (Sua Excelência o povo, que não tem um só representante no Planalto Central).

O difícil neste momento será cumprir não o teto, mas a meta de déficit primário. Considerando o cenário econômico atual, o cumprimento da meta de déficit do governo central em 2019, de R$ 139 bilhões, requer um contingenciamento no Orçamento na casa de R$ 34,2 bilhões. Por causa disso, observa a economista Vilma Pinto, especialista em contas públicas do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), os gastos discricionários não poderão ultrapassar R$ 95 bilhões no corrente ano.

Nos 12 meses acumulados até junho deste ano, o gasto discricionário do governo federal atingiu R$ 120 bilhões. Como se vê, é necessário portanto um encolhimento expressivo de R$ 25 bilhões. Segundo Vilma, há duas possibilidades: reduzir ainda mais o custeio, com o risco de comprometer o funcionamento da máquina pública; ou, cortar ainda mais os investimentos, comprometendo a preservação do capital público e freando ainda mais a demanda da economia, que segue fraca.

O fato mais marcante ocorrido em 2017, devido à escassez de recursos públicos, foi a suspensão temporária da emissão de passaportes pela Polícia Federal. A crise virou um símbolo do risco de corte excessivo das despesas discricionárias.

Manoel Pires, pesquisador associado e coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre, observa que, a preços de 2010, as despesas "contingenciáveis" caíram de R$ 94,6 bilhões em 2016 para R$ 75,7 bilhões em 2017. A única diferença entre as despesas discricionárias, mencionadas por Vilma, e as contingenciáveis, citadas por Pires, é que estas últimas excluem aportes a estatais.

Em valores nominais, essa diferença em 2019 faz com que as despesas discricionárias no conceito da pesquisadora estejam previstas para R$ 97,6 bilhões, enquanto, excluindo aporte a estatais, a projeção é de R$ 87,4 bilhões.

De qualquer forma, tomando-se o conceito de Pires, a despesa real contingenciável - a preços de 2010 - prevista para 2019 é de apenas R$ 52,7 bilhões. Note-se que é muito menor que o nível de R$ 75,7 bilhões de 2017 (na mesma base real de preços), que já provocou os problemas de funcionamento da máquina pública citados acima.

Problemas mais sérios na gestão da máquina pública este ano se deverão à meta de primário, e não ao teto constitucional dos gastos. Esse resultado surpreende até certo ponto. O teto de gastos, estabelecido pela Emenda Constitucional 95, de 2016, começou a vigorar em 2017, e havia expectativa de que tornasse o limite mais restritivo da política fiscal - e muito difícil de cumprir - em dois ou três anos.

No entanto, isso não se verificou nestes três primeiros anos. Agora em 2019, como explicado acima, a maior restrição da política fiscal reside na meta de resultado primário.

Alguns fatores ajudam a explicar por que isso aconteceu. Em 2016, a repatriação de capitais impulsionou a receita, com um ganho de R$ 46,8 bilhões, permitindo uma elevação das despesas sem comprometer a meta de resultado primário. Essa alta da base inicial das despesas, congelada em seu valor real pela EC 95, evitou que o teto de gastos se tornasse limitante em 2017 e 2018. Já para 2019 a expectativa era diferente, de que a restrição se tornasse efetiva.

No entanto, a greve dos caminhoneiros provocou um salto da inflação (IPCA) em 12 meses até junho de 2018, para 4,4%, o que determinou a correção monetária do teto dos gastos. Esse percentual acabou bem acima, por exemplo, da inflação acumulada em 12 meses até dezembro de 2018 (INPC), de 3,4%, que corrigiu os benefícios previdenciários atrelados ao salário mínimo. O governo à época divulgou que o efeito de elevação do IPCA pela greve dos caminhoneiros aumentou o teto em R$ 14 bilhões.

Em 2020, porém, provavelmente chegará a hora da verdade em relação ao teto dos gastos. O IPCA em 12 meses acumulado até junho de 2019, que corrigirá o teto dos gastos, é de apenas 3,37%, não havendo, portanto, a folga proporcionada em 2019 pela evolução do mesmo indicador até junho de 2018. Além disso, a elevação das despesas obrigatórias tende a continuar pressionando o espaço restante para os gastos discricionários, mantendo níveis de investimentos e custeio discricionário extremamente baixos.

Nenhum comentário: