domingo, 4 de agosto de 2019

Dorrit Harazim: O enterro de Woodstock

- O Globo

A tentativa de reviver Woodstock fracassou. Melhor assim, pois tinha tudo para dar errado. Melhor não tentar ressuscitar o que é único

Foi melhor assim, pois tinha tudo para dar errado. O enterro oficial da fantasia de reviver a era de Aquarius ocorreu quatro dias atrás, com o cancelamento formal do que estava programado para ser uma estelar edição em comemoração dos 50 anos de Woodstock. Deve ter sido um alívio até mesmo para Michael Lang, que tinha 24 anos quando coproduziu aquele épico musical da geração paz-amor-sexo e rock’n’roll, e que hoje, septuagenário, tenta sobreviver no mundo de 2019.

O projeto de agora acabou inviabilizado por brigas com investidores, pela dificuldade de obter um local —a versão de última hora do evento marcado para 16 de agosto ficaria espremida num anfiteatro com capacidade para míseras 30 mil pessoas —, pela desistência de nomes de peso como Miley Cyrus e Jay-Z, e pelo cipoal de exigências contratuais da indústria do entretenimento.

Sinal dos novos tempos: como os artistas contratados já haviam recebido seus cachês (vários bem acima de US$ 1 milhão), os organizadores sugerem que doem pelo menos 10% do embolsado a alguma causa social. De preferência para a ONG HeadCount, que ajuda residentes nos Estados Unidos a obter um registro eleitoral e votar em 2020. Ou seja, nada a ver com a alegria sem selfies de outra era. Melhor não tentar ressuscitar o que é único.

Corte para agosto de 1969, último mês do último verão dos anos 60 na calota Norte. O Woodstock original, cujo nome oficial nunca emplacou — “Uma Exposição Aquariana: 3 Dias de Paz & Música” —também teve tudo para dar errado. O local contratado precisou ser remanejado para uma fazenda de gado de 245 hectares a duas horas de Nova York. Perto de cem mil ingressos haviam sido vendidos a US$ 18 cada (cerca de R$ 450 em dinheiro de hoje) e outros 50 mil jovens já entupiam as estradas de acesso ao imenso descampado, quando ainda faltavam dois longos dias para os primeiros acordes.

Não havia, nem haveria, a infraestrutura mínima para dar conta do que se avizinhava. E a primeira da série de soluções espontâneas para as muitas e caóticas problemáticas da empreitada foi decisiva: na impossibilidade de cobrar ingresso dos que chegavam, os organizadores liberaram geral. Ninguém pagaria mais nada. Perderam dinheiro? Muito, antes de compensarem com a miríade de direitos autorais que brotaram. O prêmio maior foi a certeza de terem ofertado à sua geração um memorial de vivência eterno.

Hoje é difícil conceber que esse meio milhão de jovens alimentados a música, maconha e LSD, acampado num chão enlameado e sem instalações sanitárias, comida ou água adequadas, formou, durante três dias, a terceira “cidade” mais populosa do estado de Nova York. Ali cada um cuidou de ser feliz e pacífico a seu modo. Os 12 agentes de segurança in loco dedicaram-se à figuração, e os 45 médicos militares de plantão eram todos voluntários.

A violência estava alhures —na Guerra do Vietnã, que recrutava boa parcela daquela geração para a morte, e nos assassinatos políticos no país (John F. Kennedy, Robert Kennedy, Martin Luther King).

Naquela cidadela sem muros nem regras nasceram dois bebês, milhares de outros devem ter nascido nove meses mais tarde, e ocorreram três abortos espontâneos. As duas únicas mortes registradas foram acidentais: uma overdose e um adolescente atropelado — o motorista não imaginou que houvesse alguém adormecido sob as rodas de seu trator. O chefe de polícia local admitiu-se contagiado pelo pacifismo daqueles hippies: “As pessoas do nosso país devem se orgulhar dessa garotada... nada a dizer contra as suas maneiras de ser, de se comportar, de pensar... Trata-se de bons cidadãos americanos!”, disse à época. Como escreveu James Parker dez anos atrás, aqueles jovens ou foram a primeira geração a saborear liberdade plena, ou a última geração capaz de se policiar sozinha.

Ah, sim, a música. Ninguém queria ser o primeiro a subir no palco diante daquele inesperado mar de gente. A lembrança de Carlos Santana, um dos 32 artistas que ali se imortalizaram, é aguda: “Foi como testemunhar um oceano de cabelos, dentes, olhos e mãos. Só fechando os olhos era possível esquecer o impacto daquele oceano de carne movediça, sentir o som reverberar naquela massa e voltar para você...” Richie Havens, escalado de supetão para abrir o festival com três horas de atraso, deveria cantar por 45 minutos. A cada vez que tentava sair do palco, era empurrado de volta para esticar um pouco mais. Sua apresentação durou duas horas a mais do que o combinado.

Devido à chuva, apenas 30 mil ainda estavam no local às 9 da manhã do quarto dia, quando a última guitarra subiu ao palco de Woodstock. Foi Jimi Hendrix. O resto é história. Como o mundo ficou chato!

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