terça-feira, 6 de agosto de 2019

Joel Pinheiro da Fonseca*: Sobre o anarcocapitalismo

- Folha de S. Paulo

O Estado precisa melhorar, não se ausentar

Ideias antes tidas por absurdas e indignas de consideração agora ocupam espaço no debate público. Isso é consequência da democratização promovida pelas redes sociais; não vai mudar. Aqueles que defendem ideias e valores mais normais —e com mais respaldo científico e acadêmico— terão de aprender a travar esses debates em pé de igualdade. As credenciais contam muito pouco. Fingir que as ideias bizarras não existem não reduz sua influência.

O anarcocapitalismo —investigado em reportagem de Fabio Zanini para a Folha— é uma dessas opiniões. É a proposta de que o Estado deixe de existir, mas não a propriedade privada. Ele nos desafia a voltar aos conceitos básicos e indagar: por que o Estado é desejável?

O Estado brasileiro é notoriamente ineficiente. O caos tributário, a má vontade regulatória, a multiplicação de estatais e a má qualidade do serviço público tornam compreensível o apelo de uma utopia anárquica.

A propriedade privada e a livre iniciativa, que dão origem ao processo de mercado, são instituições brilhantes por harmonizar o interesse individual ao coletivo: mesmo o mais egoísta se vê obrigado a oferecer algo de valor aos demais para receber deles algo em troca. Com o uso da moeda, esse processo gera preços que, por sua vez, transmitem informação sobre a escassez relativa dos diversos bens e serviços, de maneira muito mais dinâmica e aberta à correção constante do que qualquer planejador central seria capaz.

Mas isso não dá conta de todos os nossos problemas. A proteção ao meio ambiente é um deles. Há interesses para destruir e poluir, gerando lucros astronômicos para alguns (e, sim, preços mais baixos) no curto prazo. Mas e o preço pago pelos afetados pela poluição e pelo desmatamento? E as gerações futuras pagarão por essa escolha? Isso não é contabilizado no mercado.

A existência de um mercado dinâmico, que gere empregos, é condição necessária para a ascensão social das classes mais baixas. Mas sem um sistema que garanta acesso à educação, saúde e um mínimo de condições de vida, essa ascensão fica muito mais sofrida e incerta. O Brasil já viveu sem que o Estado se preocupasse em universalizar a educação: o resultado era o analfabetismo geral. Ele precisa melhorar, não se ausentar.

Em séculos passados, a teoria da propriedade proposta por John Locke (se um pedaço de terra não tem dono, o primeiro que se apropriar dele com seu trabalho vira o dono) justificou a tomada violenta de terras comunitárias na Inglaterra e de territórios indígenas nas colônias americanas. Hoje, justificaria o desmatamento da Amazônia.

Afinal, é o aparato estatal que age ilegitimamente ao obstruir o trabalho de madeireiros, garimpeiros e grileiros sobre terras sem dono.

Há ainda o problema da desigualdade. O capitalismo desenfreado sem nenhum anteparo estatal partiria da desigualdade de riquezas e oportunidades tal como ela é nos dias de hoje. E o processo histórico que gerou essa realidade desigual não se pautou, nos últimos 500 anos, pelas regras da livre concorrência e da meritocracia...

Qual o valor de defender uma liberdade abstrata se essa defesa resultará, na prática, em muita liberdade para poucos privilegiados enquanto muitos carecem do básico e, portanto, da liberdade de se desenvolver? Por que a liberdade que depende da redistribuição vale menos do que a que depende da manutenção da propriedade atual? Menos Estado não significa necessariamente mais liberdade.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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