sábado, 24 de agosto de 2019

Marco Aurélio Nogueira*: Defender a cultura, sempre

- O Estado de S.Paulo

O que seria do brasileiro sem a música, em suas múltiplas manifestações?

Quando brumas caem sobre a cena pública e a polarização político-ideológica persiste, animada por grosserias, agressões e arroubos retóricos vindos de cima, é hora de valorizar a cultura e resistir aos que tentam criminalizá-la.

Na cultura repousa o que identifica uma nação e faz uma população se reconhecer como parte de uma coletividade. De norte a sul, de leste a oeste, nas grandes cidades e nas mais recônditas localidades do Brasil profundo, é a posse de uma mesma língua, de hábitos enraizados, de símbolos, de maneiras de pensar, sentir e fazer que dá ao brasileiro a percepção de que, na vida, há algo além da sua pessoa e do lugar geográfico. Por brotar da experiência, a cultura não pode ser capturada pelo Estado, muito menos pelos governos de plantão. Continua a pulsar, sempre.

A língua é essencial, mas não opera sozinha. A cultura artística cumpre função semelhante e às vezes até mais importante. Ela ajuda a plasmar nossas marcas civilizatórias, com suas virtudes, seus sucessos e seus fracassos.

A literatura é uma preciosa forja de vida comum e identificação, desde suas expressões mais “simples” (como o cordel, por exemplo) até as produções mais “sofisticadas”. Machado, Lima Barreto, Graciliano e Jorge Amado, para citar alguns bem conhecidos, não somente deram representação estética às experiências existenciais dos brasileiros, como os ajudaram a adquirir consciência de si.

O que seria do brasileiro sem a música, em suas múltiplas manifestações singulares, regionais, étnicas, de época, de classe social? Como nos reconheceríamos sem o cinema, o teatro, a televisão, as artes plásticas, estas últimas estruturadas por escolas que vão do naïf e do primitivo aos topos do concretismo e da arte abstrata? Como estaríamos sem artistas ativos, envolvidos nos temas de sua época, nos embates públicos, que colam sua prática à dinâmica sociopolítica, contribuindo para que se formem redes de identidades?

Como intelectuais, os artistas não são um agregado à parte, independente, embora tenham suas particularidades. Estão inscritos nos conflitos e contradições da sociedade, têm raízes nos grandes grupos sociais e lidam com os mesmos interesses que demarcam a sociedade. Isso leva a que tomem partido. Numa época de redes, indústria cultural de massas e mídia intensiva, os artistas se destacam ainda mais, muitos viram estrelas de primeira grandeza, são solicitados e se engajam em múltiplas causas.

Mas “ir aonde o povo está” não significa instrumentalizar as manifestações artísticas, despojá-las de significado geral ou rebaixá-las ao cumprimento de ordens de quem quer que seja. Também não dispensa o artista de traduzir adequadamente o mundo e a dinâmica política em que se respira. Não pode ser algo movido por impulsos ou identificações simples. Se a época é de fluxos incessantes, a arte não pode correr o risco de se tornar igualmente fluida e efêmera. Deve permanecer buscando dar sentido à vida, captar o duradouro, mapear tradições: fazer-se cultura.

Um livro recentemente publicado pela Editora Terceiro Nome mostra bem como se pode dar esse encontro da arte com a vida. Trata-se de uma homenagem feita pela historiadora Rosa Artigas à mãe, a desenhista, gravurista e pintora Virgínia Artigas (1915-1990). Organizado com capricho, o livro nos apresenta uma figura singular, dona de rara sensibilidade e de uma energia cívica contagiante. Virgínia produziu muito, mas não chegou a ter uma visibilidade à altura do seu talento, em parte porque esteve sempre casada com Vilanova Artigas, o genial arquiteto comunista, e com ele amargou perseguições, prisões e exílio, em parte porque sempre fez questão de cuidar da casa, proteger a própria família, sem desistir de se engajar em causas cívicas. Fazer arte, para ela, não significava habitar uma torre de marfim. Implicava, literalmente, sujar as mãos: comprometer-se.

Não é por acaso que a produção de Virgínia Artigas está repleta de ilustrações, desenhos e cartazes feitos para os jornais do Partido Comunista, para greves operárias e manifestações do movimento feminista ou pela anistia. A temática social e os retratos predominam em sua pintura. A artista trabalhou tanto nessa agenda congestionada e exigente que sua criação pessoal acabou ficando fora do circuito das galerias e do mercado de arte.

Em Virgínia Artigas: Histórias de Arte e Política, a historiadora traça uma trajetória de vida à moda intimista, “por dentro”, a partir de suas próprias reminiscências. São histórias muito bem escritas – sensíveis, bem-humoradas, ora amargas, repletas de personagens heroicos e pessoas comuns – que mostram a artista de corpo inteiro, dividida entre os cuidados domésticos, a pintura e a militância política, lutando para preservar uma produção artística à margem do trabalho que fazia para partidos e movimentos políticos. Vivia cercada de jovens, que a procuravam atrás de conselhos e orientações. Seus desenhos, muitos dos quais estampados no livro, mostram a beleza e a força de sua arte.

Conhecer essa artista singular, que atravessou o século 20 angustiada pelos problemas da época, funciona como um sopro de oxigênio num momento em que parece faltar ar. Revela-nos o poder da política e da empatia afetiva na atividade artística. É um grito de alerta contra o obscurantismo que domina o governo central e deseja enquadrar os intelectuais por tudo o que fazem em defesa da cultura.

Se viva estivesse hoje, Virgínia estaria pedindo ao movimento democrático que trabalhe para que se definam as tarefas da inteligência e se elaborem políticas para a cultura, de modo a valorizá-la de modo pleno e blindá-la contra os ataques e as seduções do poder. Muito provavelmente concordaria com a ideia de que nos piores momentos, quando tudo parece bloqueado, também germinam grandes saídas, que trazem a cultura consigo, sempre.

*Professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp

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