terça-feira, 13 de agosto de 2019

Míriam Leitão: Caso argentino é diferente de tudo

- O Globo

Kirchnerismo não é o chavismo, como quer fazer crer Bolsonaro, e o fracasso de Macri não é a derrota do liberalismo, como diz Dilma

Há sempre uma tentativa de entender a Argentina com os parâmetros de outros países. Não é possível. Eles são bem específicos. Nem kirchnerismo é o chavismo, como quer fazer crer o presidente Bolsonaro, nem o fracasso de Maurício Macri é a derrota do liberalismo, como diz a ex-presidente Dilma. Macri paga o preço de não ter entregado a mudança da economia que prometeu, e Cristina Kirchner ainda se beneficia do período de grande crescimento na chegada do seu marido ao poder. Na sua gestão a economia desandou, mas ficou a boa lembrança entre os eleitores.

O mercado ontem na Argentina teve um ataque de nervos refletido em todos os indicadores. Bolsa com queda de 37%, algumas ações caíram 50%, o dólar subiu 17%, os juros foram a 74%. Uma hecatombe. Esperava-se que a chapa Alberto Fernández e Cristina Kirchner fosse ter mais votos, mas não tantos assim. Nos bancos, a avaliação é a de que o quadro político ficou irreversível. O presidente Bolsonaro falou que não quer que os argentinos fujam para cá se a “esquerdalha” vencer lá, e a ex-presidente Dilma falou que a vitória do peronismo é a “luz do fim do túnel”. Nem uma coisa, nem outra.

A votação foi descrita assim pelo jornalista Martín Rodríguez Yebra, no “La Nación”: “Não se elegia nada, mas se definiu quase tudo.” Basta a chapa repetir o mesmo resultado que vencerá no primeiro turno em outubro. O peronismo mostrou força em várias províncias. Na mais importante delas, a de Buenos Aires, Axel Kicillof teve quase 50% sobre a atual governadora Maria Eugenia Vidal, ligada a Maurício Macri. Kicillof foi do movimento jovem criado por Kirchner, o La Cámpora. Depois, virou ministro da economia de Cristina.

Pode-se dizer que é cedo, já que são as primárias — um formato específico da Argentina —mas na eleição deles a chapa que tem 45% ganha no primeiro turno. A luta do presidente Macri será impedir a derrota no primeiro turno para tentar reverter no segundo. Os analistas do mercado financeiro não acreditam nesse cenário.

De onde vem a boa imagem do kirchnerismo se eles erraram? E eles erraram. Deixaram o país sem reservas, inflação alta, distorções no sistema de preços e baixo crescimento. O fato é que ex-presidente Néstor Kirchner assumiu depois de um grande colapso econômico e político e comandou a reconstrução. Houve um forte crescimento entre 2003 e 2007, 8,75% em média, impulsionado pelo aumento dos preços das commodities e pela expansão do gasto público. A taxa de desemprego caiu de 17% para 7%, e a inflação, embora tenha subido, continuou em um dígito. Como o país tinha dado o calote total em 2001, por falta absoluta de capacidade de pagamento, Kirchner conseguiu em 2005 renegociar com grande desconto a dívida argentina.

Em 2008, já no governo de Cristina, o crescimento caiu para 4% e em 2009 o PIB ficou negativo em 5%. Mas o país teve mais dois anos de forte crescimento. A política econômica ficou cada vez mais intervencionista. A inflação subiu, e o governo, em vez de combatê-la, fez uma intervenção no Indec. Mesmo assim a taxa continuou subindo. Houve mudança nos preços de energia que distorceram totalmente o mercado. O PIB oscila entre baixo crescimento ou recessão desde 2012.

Macri assumiu prometendo mudar tudo, mas acabou optando por mudanças graduais. O índice de inflação foi corrigido, e a taxa subiu. Ele prometeu que, depois da correção, ela cairia. Não conseguiu. A taxa hoje está em torno de 55%, e ele acabou fazendo aquilo que condenara: controlou preços de cesta básica.

Fez um acordo com o FMI, mas o governo argentino ainda depende de US$ 15 bilhões de financiamentos para rolar sua dívida externa até o final do ano que vem. O mercado acredita que se Fernández for eleito haverá outro calote.

—A oposição precisa derrubar as incertezas a respeito da sua política econômica. A economia se move com as expectativas positivas. Hoje, nenhum dos lados está entregando isso — disse o economista Gabriel Caamaño da Consultoria Ledezma, de Buenos Aires.

O mercado financeiro queria dar outra chance a Macri, mas a população argentina prefere dar outra chance ao peronismo, um populismo surgido na primeira metade do século passado. É difícil traduzir a Argentina, mas nem é luz no fim do túnel, nem o país está à beira de virar a Venezuela.

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