sábado, 10 de agosto de 2019

O que pensa a mídia: Editoriais

O uso do poder para fins pessoais, anátema na República: Editorial / O Globo

É legítimo Bolsonaro executar o programa que o elegeu, mas dentro das regras constitucionais

Um presidente da República não pode agir levando em conta seus interesses pessoais, sentimentos e ressentimentos

Todos os que têm cargo público no Brasil, sejam ou não eleitos, não podem usá-lo para fins pessoais. Essa proibição aparece claramente em nossa Constituição. O artigo 37 é cristalino. Diz que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá, entre outros, ao princípio da impessoalidade. Ou seja, no exercício da função, nenhum agente público pode agir para satisfazer seus interesses pessoais ou levando em conta seus sentimentos ou seus ressentimentos. Na definição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “A administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis.”

Esse é o fundamento da República, da Res Publica, da Coisa Pública.

O presidente da República é o chefe da administração pública no Poder Executivo. Ele, mais do que ninguém, está submetido a essa regra. O presidente Jair Bolsonaro tem dito coisas assim, porém: “Imprensa, eu ganhei as eleições, eu sou o Johnny Bravo. Parem de me derrubar. Vamos em frente.” Mas submeter-se à regra constitucional é um dever que não mudaria nem na hipótese absurda de ter sido eleito por unanimidade. Agir de outra maneira é atentar contra a Constituição, ele que, na posse, diante do Congresso Nacional, prestou solenemente o juramento constitucional.

Bolsonaro tem dado mostras de não entender isso, não se sabe se de forma consciente ou inconsciente. Não importa, suas ações são de extrema gravidade. As últimas semanas foram infelizmente ricas em exemplos.

Em 15 de julho, Bolsonaro anunciou que indicaria o seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, para o cargo de embaixador nos EUA, o posto mais alto da diplomacia mundial. As razões apontadas por ele: seu filho fala inglês, é viajado e tem relações de amizade com a família Trump (em seguida, o próprio filho disse que também o credenciava para o cargo o fato de ter feito um programa de intercâmbio linguístico nos EUA e de ter fritado hambúrgueres por lá). Criticado, o presidente não escondeu uma de suas motivações, numa rede social no dia 18 de julho: “Lógico, que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé-mignon”. Percebendo a confissão, emendou: “Mas não tem nada a ver com filé-mignon, nada a ver, é realmente, nós aprofundarmos um relacionamento com um país que é a maior potência econômica e militar do mundo”. Dias depois, reforçando que se tratava de satisfazer um capricho, admitiu que o Senado poderia até mesmo barrar a indicação. Mas anunciou o remédio que pretendia usar: “Imagine que no dia seguinte eu demita o [ministro de Relações Exteriores] Ernesto Araújo e coloque meu filho. Ele não vai ser embaixador, ele vai comandar 200 embaixadores e agregados mundo afora.” Não importa que diga uma coisa para se desdizer em seguida e voltar a dizer. Um presidente da República está proibido de tomar atitudes movido pelos sentimentos de um pai, não pode usar o cargo para acarinhar um filho. É inconstitucional.

Na segunda-feira, 5, o presidente assinou uma medida provisória, publicada no dia seguinte, para alterar uma lei que ele mesmo sancionou apenas quatro meses antes. A lei, que tramitou no Congresso por quatro anos, estipulava janeiro de 2022 como prazo para o fim da obrigatoriedade de empresas publicarem seus balanços em jornais. O objetivo era dar tempo para que os veículos de todo o país, principalmente os de pequeno e médio portes, se adaptassem ao fim das receitas oriundas da publicação dos balanços. A MP de Bolsonaro antecipou para já esse prazo. O presidente ironizou, entre risos: “Eu espero que o ‘Valor Econômico’ sobreviva à medida provisória desta terça, disse, referindo-se ao jornal do Grupo Globo especializado em economia. Mais tarde, foi novamente transparente ao falar sobre seus objetivos: “No dia de ontem eu retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou, assinei uma medida provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais para publicar obrigatoriamente, por força de lei, seus balancetes nos jornais, agora podem fazê-lo no Diário Oficial da União a custo zero”. Como já é habitual, não se sabe se por confusão ou método, Bolsonaro acrescentou, sem desmentir o que acabara de dizer: “Não é uma retaliação contra a imprensa, é tirar o Estado de cima daquele que produz.” De novo, não importa. A palavra de um presidente tem peso. A MP foi vingança, ressentimento, o uso do poder em benefício próprio. Às favas, com o princípio da impessoalidade.

Na mesma terça, 6, a Petrobras cancelou o contrato de prestação de serviços com o escritório de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB. Em 29 de julho, sem ser perguntado, Bolsonaro criticara Santa Cruz porque a OAB tinha se posicionado contra a quebra do sigilo telefônico dos advogados de Adélio Bispo de Oliveira, o homem que o esfaqueou na campanha eleitoral. E, do nada, insinuou, sem base na realidade, que o pai de Santa Cruz não teria morrido nas mãos do Estado na ditadura militar, mas justiçado pelo grupo de esquerda a que pertencia. A insinuação levou Santa Cruz, indignado, a interpelar judicialmente Bolsonaro. E a consequência foi o cancelamento do contrato pela Petrobras. O presidente da OAB disse à imprensa que a atitude foi uma retaliação do presidente. E foi. A Petrobras é uma empresa de economia mista. E, mesmo se fosse 100% estatal, a empresa não poderia ser usada para vinganças do presidente. A Constituição não permite. Bolsonaro ou o contínuo de uma repartição pública estão ambos submetidos ao princípio da impessoalidade.

A História é cheia de exemplos de que a República e a democracia só sobrevivem se há tolerância zero com desvios dessa natureza, grandes ou pequenos. Ela ensina que nações que de início fecharam os olhos para condutas impróprias não puderam depois abri-los quando decidiram agir. O sistema de checks and balances (freios e contrapesos) garante a independência e a harmonia entre os Poderes. As ações de cada um deles devem ser autônomas e complementares. Um controla o outro para garantir que ninguém seja o dono da nação. O Congresso e o Judiciário, ao longo dos anos depois da redemocratização, têm honrado esse dever.

Em recente julgamento, ao anular uma decisão de Bolsonaro que solapava outro princípio constitucional, justamente o da separação dos Poderes, o decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, foi feliz ao abordar o perigo que a tolerância com desvios acarreta: “É sempre preciso advertir que o regime de governo e as liberdades da sociedade civil muitas vezes expõem-se a um processo de quase imperceptível erosão, destruindo-se lenta e progressivamente pela ação ousada e atrevida, quando não usurpadora, dos poderes estatais.”

A fala do decano é tranquilizadora. Demonstra que as instituições estão atentas. E que aprenderam com as lições da História. É ocioso dizer que o presidente Jair Bolsonaro tem legitimidade plena e pode e deve implementar o programa que o elegeu. Mas deve fazê-lo dentro das balizas constitucionais, respeitando as regras do jogo democrático e da República. Para o bem do Brasil.

Lava Jato no espelho: Editorial / Folha de S. Paulo

Mensagens vazadas oferecem oportunidade para reforçar limites de investigadores

Passados dois meses desde que as mensagens vazadas de integrantes da Lava Jato começaram a ser divulgadas, é possível tirar três conclusões sobre o procurador Deltan Dallagnol, o chefe da força-tarefa à frente da operação em Curitiba.

Nos anos em que o ministro Sergio Moro foi o juiz responsável pelo caso, o procurador desenvolveu relação de grande proximidade com ele, em que trocaram informações, debateram estratégias e discutiram decisões fora dos autos.

Ficou evidente que Dallagnol lucrou com a fama alcançada, dando palestras sobre corrupção para empresas e associações privadas. Pode ter faturado com elas quantias superiores aos rendimentos que recebe como servidor público.

Surgiram indícios de abuso de poder. As mensagens obtidas pelo site The Intercept expõem diversas situações em que o coordenador da força-tarefa incentiva colegas a investigar ministros do Supremo Tribunal Federal sigilosamente, com desprezo aos limites legais.

Caberá ao Judiciário e ao Conselho Nacional do Ministério Público, responsável pela fiscalização do trabalho dos procuradores, examinar as condutas de Dallagnol, determinar o que há de impróprio nelas e decidir se merecem punição.

Mas os danos causados pelos vazamentos à credibilidade do procurador são difíceis de reparar, e sua continuidade nas atuais funções parece ter se tornado inviável.

Mesmo que se considere a origem ilícita do material, obtido por jornalistas após a invasão de aparelhos celulares por um hacker, é impossível ignorar o conteúdo dos diálogos e as suspeitas que levantam sobre as ações da Lava Jato.

Para evitar debater a substância das revelações, Dallagnol tem lançado dúvidas sobre a autenticidade das mensagens e atacado os críticos, que acusa de defender a impunidade de corruptos e poderosos. Trata-se de estratégia diversionista e provavelmente inócua.

Ninguém despreza os resultados da Lava Jato, mas eles não podem servir de escudo para proteger os participantes da operação e impedir que sejam coibidos abusos como os revelados pelo vazamento.

Há certamente uma oportunidade para aperfeiçoar o controle do trabalho dos procuradores, exercido atualmente com tibieza pelo CNMP. Suas normas poderiam impor rigor e transparência a atividades como as palestras de Dallagnol.

Há espaço para que o Congresso e o Supremo reforcem os limites que devem ser respeitados pelos investigadores, sem ignorar a proteção garantida pela Constituição à independência do Ministério Público e de seus membros.

As mensagens vazadas oferecem um espelho incômodo para os que participaram de excessos da Lava Jato. O futuro do combate à corrupção dependerá das lições que souberem extrair dessa reflexão.

Abismo de incompreensão: Editorial / O Estado de S. Paulo

Em junho, o presidente Jair Bolsonaro manifestou incompreensão a respeito do papel das agências reguladoras, ao vetar trechos importantes do marco regulatório das agências aprovado pelo Congresso. Em vez de fortalecer sua autonomia, Bolsonaro optou por torná-las mais dependentes do poder político. Recentemente, voltou a manifestar sua obtusa visão sobre o Estado. Na inauguração de uma indústria farmacêutica em Itapira, criticou o papel das agências reguladoras e fez menção à sua atuação como parlamentar, quando fez resistência à modernização do Estado.

“As agências foram criadas lá atrás por um presidente, um tal de FHC. Não vou entrar em detalhes sobre o que já falei sobre ele no passado. Quando as agências foram criadas, eu fiz um discurso na Câmara pesado, lamento que naquela época não tinha TV Câmara. E infelizmente eu estava com a razão”, disse o presidente Jair Bolsonaro, mostrando que é um engano a ideia de que ele teria retificado ou aprimorado suas opiniões sobre o papel do Estado. Jair Bolsonaro continua aferrado à mesma incompreensão sobre o que é e como deve funcionar o poder público.

Com seu caráter técnico, independente do poder político, as agências reguladoras têm papel fundamental na garantia da qualidade dos serviços públicos prestados pelas concessionárias privadas, além de transmitir segurança jurídica a setores sujeitos a pressões políticas e econômicas. Muito do que se pôde avançar, por exemplo, na qualidade dos serviços de telefonia só foi possível graças ao processo de reforma do Estado brasileiro iniciado na década de 90 do século passado. Com a privatização de muitas empresas estatais e a concessão de serviços públicos a grupos privados, era necessário prover o Estado de uma nova capacidade regulatória que, livre de pressões político-partidárias, protegesse o interesse público nessas áreas. Cada vez que a ele se refere, Jair Bolsonaro reitera que nada entendeu deste processo.

Mas, a rigor, o que se viu nos primeiros sete meses de governo é muito mais grave do que a mera incompreensão do presidente da República do papel das agências reguladoras, o que por si só representa um retrocesso de duas décadas de administração pública, o que certamente a população não deseja que ocorra.

Com suas palavras e atos, Jair Bolsonaro revela uma fantástica incapacidade de compreender as regras mínimas de funcionamento de toda organização, seja ela pública ou privada, lucrativa ou beneficente. Segundo seu modo peculiar de tratar os assuntos, não deve haver procedimentos, critérios decisórios ou esferas de competência. Tudo deve estar sujeito ao seu arbítrio. Nesse sentido, afirmar que o presidente Jair Bolsonaro tem uma visão específica do Estado é não captar o abismo de incompreensão que se encontra atualmente instalado no Palácio do Planalto. O problema não é que ele tenha uma visão anacrônica do Estado. Por sua atuação e por suas palavras, ele torna evidente a ausência de qualquer visão sobre a estrutura e o funcionamento de uma organização. O que dizer, então, do seu entendimento sobre a complexa organização do Estado, com seus Poderes, suas esferas, suas regras, seus limites e seus controles?

Para Jair Bolsonaro, ser presidente da República é ter o arbítrio – sem necessidade de nenhuma justificativa que não seja seu capricho – de interferir na propaganda do Banco do Brasil ou no preço que a Petrobrás cobra pela gasolina. É poder indicar o filho para a embaixada em Washington, porque assim o deseja. É desrespeitar a memória do pai do presidente da OAB, porque ficou incomodado com a atuação da entidade. Como é imperioso, não se dá nem mesmo ao trabalho de conhecer a realidade. Em vez de se informar por fontes fidedignas, busca aquele cordão que a cada dia aumenta mais.

Deve-se recordar, no entanto, que há uma Constituição, a qual o presidente Jair Bolsonaro jurou respeitar e defender no dia 1.º de janeiro de 2019. Ainda que atue como se não existisse organização do Estado, não pode ignorar a Carta Magna. Há regras, limites, esferas e controles. Jair Bolsonaro não tem mandato para desconstruir o Estado brasileiro. Sobre o que pretenderia – se é que pretende – construir no lugar, ainda não se ouviu nenhuma palavra. O que disso se pode inferir é simplesmente terrível.

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