quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Pedro Ferreira* e Renato Fragelli* || A proeminência da ortodoxia

- Valor Econômico

A ampla dominância das teorias ortodoxas se explica por seus resultados, não por fatores ideológicos

Resumindo-se de forma caricatural as controvérsias entre economistas de diferentes correntes, pode-se dizer que, para os heterodoxos o nível de preços é determinado pela curva de oferta, enquanto o nível de atividade é explicado pela de demanda; para economistas ortodoxos ou do "mainstream", a explicação é exatamente a oposta.

Se o nível de preço - e consequentemente a inflação - fosse um problema exclusivamente de oferta, a simples redução da taxa de juros estimularia investimentos que gerariam aumento da produção, que por sua vez provocaria queda dos preços. A falha dessa visão está no fato de que o maior investimento somente gerará elevação da oferta no futuro, mas no curto prazo constitui aumento de demanda. Some-se a isso que a mesma queda de juros destinada a estimular o investimento também impulsiona o consumo. Quando a economia opera perto do pleno emprego - como durante parte do governo Dilma Rousseff - juros mais baixos elevarão a demanda, pois não há capacidade produtiva ociosa para a oferta crescer, resultando em maior inflação.

Não há teoria "certa". Pode-se - como foi feito por excelentes economistas - desenvolver teorias lógicas e internamente coerentes onde manchas solares afetam expectativas dos agentes e o nível de atividade. O importante para a tomada de decisões é se os dados e a evidência de alguma forma corroboram, ou pelo menos não rejeitam a teoria. No caso brasileiro, a abordagem da inflação pelo lado da oferta fazia sentido quando a inflação estava em três dígitos anuais, num ambiente de ampla indexação determinada por lei. Após a desindexação instituída pelo Plano Real, num ambiente de inflação de um dígito, os dados não foram generosos com teorias de combate à inflação pelo lado da oferta. Sua aplicação, via de regra, resultou em aceleração inflacionária.

O baixo crescimento brasileiro, este sim, é um fenômeno do lado da oferta ligado à baixa eficiência econômica. Como já dito neste espaço, mesmo controlando por diferenças de intensidade de capital físico e de qualidade da mão de obra, o produto por trabalhador brasileiro permanece muito menor que o dos países líderes, algo entre 50 a 60% abaixo. Somos muito ineficientes em produzir bens e serviços e não há evidências de que melhoramos muito no passado recente. Se o grosso de nosso atraso não está no capital, aumentar a taxa de investimento ajuda, mas não resolverá o problema.

Um economista com inclinações heterodoxas discordaria. Para os mais radicais, o lado da oferta é irrelevante, pois o crescimento de longo prazo se daria por uma sequência de estímulos à demanda de curto prazo. O importante seria aguçar continuamente o espírito animal dos empresários e investidores. Há pouca ou nenhuma evidência de que o mundo funcione assim. Isso não impede que se insista em políticas de expansão da demanda - via maiores gastos públicos ou redução, em qualquer cenário, da taxa de juros - como estratégia de crescimento.

Quando enfocam o lado da oferta, teorias heterodoxas propõem afetar preços relativos para incentivar a produção local e a inovação, seja via proteção tarifária e substituição de importações, créditos subsidiados, ou incentivos fiscais. Não há estudos consistentes que mostrem que essas políticas funcionem no longo prazo. Quando muito usa-se evidências anedóticas para defendê-las: o país X utilizou essas políticas no passado, e seu crescimento foi muito alto. Há aqui um problema de identificação - esquece-se que o país X também implementou inúmeras outras políticas no mesmo período - educação, infraestrutura, controle fiscal - que têm impacto positivo sobre o crescimento. Há também um problema de viés de seleção: inúmeros países implementaram políticas semelhantes - a América Latina é o grande exemplo - com resultados ruins.

A pior consequência dessas políticas, entretanto, é que ao se favorecer este ou aquele grupo de setores e firmas, introduzem-se distorções na economia que prejudicam todos os outros setores e firmas. O aumento dos preços de bens intermediários e bens de capital, seja por políticas de restrição à competição doméstica ou de barreiras tarifárias, implica utilização de tecnologias potencialmente inferiores, o que afeta a produtividade de todos os setores econômicos e consequentemente do país como um todo.

A moderna teoria econômica, e as inúmeras evidências que a acompanham, mostram que distorções microeconômicas explicam uma parte muito grande, senão dominante, das diferenças de produtividade e eficiência econômica observadas entre países. Alguns exemplos mais relevantes: instituições que favorecem determinados grupos e não provem incentivos ao investimento; políticas de proteção à produção doméstica; legislações que protegem monopólios e grupos de interesses; tributos que distorcem demasiadamente a atividade econômica; burocracia em excesso afetando o dia a dia das empresas; reservas de mercado que impedem inovação e entrada de novos competidores; barreiras à integração aos processos produtivos globais, para citar os mais relevantes. A reintrodução da CPMF, por exemplo, ao afetar desigualmente diferentes cadeias produtivas, forçar verticalizações artificiais e diminuir a intermediação financeira, seria mais um fator a reduzir a eficiência e produtividade no pais.

Essas distorções levam à especialização em setores onde o país tem pouca capacidade de competir, favorecem o crescimento de firmas ineficientes e impedem o crescimento das mais dinâmicas (ou mesmo seu surgimento), além de dar pouco incentivo ao investimento, o que exatamente buscavam aumentar. O resultado é a baixa produtividade agregada e o lento crescimento observado no Brasil há quatro décadas.

Como dito acima, não há teoria "certa". Passando o teste da lógica interna, há teorias capazes de explicar um número grande de fenômenos econômicos e que não foram - até o momento - derrubadas por evidência empírica robusta. A ampla dominância das teorias ortodoxas na academia econômica global se explica por seus resultados, não por fatores ideológicos, como críticos mais rasteiros afirmam. A insistência de parte da heterodoxia em teorias e políticas com baixa aderência aos dados, mas fortes cores ideológicas, explica por que sua popularidade vem diminuindo mundo a fora.

*Pedro Ferreira Cavalcanti é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
*Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV

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