segunda-feira, 16 de setembro de 2019

José Goldemberg* - Políticas públicas e ‘modismos’

- O Estado de S.Paulo

A aprovação de projetos passa sempre por uma criteriosa análise de cientistas qualificados, como fazem no Brasil o CNPq, a Capes e a Fapesp

A revolução tecnológica nas telecomunicações que se verificou nas últimas décadas, com telefones celulares, GPS e internet, deu origem ao comércio eletrônico, ao Uber e tantas outras aplicações que criou a sensação que ela não tem limites. Inteligência artificial, robôs e automóveis elétricos são apenas algumas das áreas que são hoje investigadas intensamente nas universidades com o apoio entusiástico de grandes empresas, como Google e Apple.

Esse apoio depende muito de decisões tomadas por empreendedores que tiveram enorme sucesso na revolução da informática, como Bill Gates, Jeff Bezos, da Amazon, e Ellon Musk, com um marketing que atrai investidores criando um verdadeiro “efeito manada”.

O que a História mostra, contudo, é que os grandes avanços em todas as áreas da ciência e tecnologia se originaram, em geral, em universidades e institutos de pesquisa financiados por órgãos governamentais onde os critérios de escolha e aprovação de projetos são impessoais. A liberdade na escolha dos problemas que os cientistas desejam investigar é o grande motor das inovações. A aprovação de projetos passa sempre por uma criteriosa análise de cientistas qualificados, como fazem no Brasil o CNPq, a Capes e a Fapesp.

Essas inovações são postas em prática por empreendedores que adotam duas estratégias para a expansão dos seus negócios:

• Criar laboratórios próprios onde a pesquisa é orientada aos objetivos da empresa;
• e doar vultosos recursos às universidades e aos institutos de pesquisas, sob a forma de filantropia.

Há exemplos de bilionários que praticaram filantropia em grande escala com resultados positivos, como a família Rockefeller e Andrew Carnegie, nos Estados Unidos, que no passado investiram bilhões de dólares em universidades, museus e hospitais (principalmente para pesquisas sobre câncer).

Todavia o personalismo envolvido em filantropia pode levar a sérias distorções, como é o caso do outro bilionário americano David Koch (falecido recentemente), que investiu pesadamente em fundações de caráter político de direita e particularmente em financiar “negacionistas” do aquecimento global. Estima-se que David Koch e seu irmão Charles Koch tenham gasto US$ 120 milhões nessas atividades. Bill Gates e sua esposa criaram uma fundação que tem feito grandes investimentos em saúde, mas a sua preferência por trabalho na área da malária é considerada controvertida.

É por essas razões que o enorme entusiasmo criado em torno de “automóveis autônomos” deve ser analisado com cuidado, como fez um artigo do [ITALIC]New York Times [/ITALIC]de 17 de julho, que lança dúvidas quanto à viabilidade dos projetos em andamento, apesar de as empresas que produzem automóveis (Ford, Chrysler, General Motors, Honda, Tesla, Jaguar e Baidu, na China) e as gigantes do Vale do Silício (Uber, Google, Apple, Amazon) estarem empenhados nessa opção.

Uma das razões para crer que automóveis elétricos sejam um “modismo”, e não uma tendência inevitável, é que eles não são compatíveis com o comportamento humano e a sua impredictibilidade. Para que um automóvel circule sem motorista ele necessita de um computador que analise a informação que vem do GPS e de câmeras de televisão e radar instalados nele. Teoricamente, se a informação for completa o computador comanda o carro, evita colisões, pedestres e outros obstáculos porque tem na sua memória inúmeras situações que poderiam acontecer e que ele manobra para evitar.

O problema é que é impossível antecipar certas situações: exemplo são ciclistas que aparecem subitamente e até os que estão se movimentando na contramão. Inteligência artificial pode servir para reconhecimento facial porque a memória de computadores é muito maior do que a nossa. Estima-se que cada um de nós seja capaz de reconhecer cerca de mil faces diferentes. Na memória do computador é possível colocar centenas de milhares de rostos diferentes e ele, então, pode identificar faces novas, o que seres humanos não conseguiriam fazer.

Existem ainda outros problemas, que não são tecnológicos, mas têm que ver com preferências e valores humanos. Dirigir um automóvel está intimamente ligado à liberdade de ir e vir na velocidade que se deseja (dentro dos limites legais). Já existem hoje em circulação no mundo cerca de 1 bilhão de automóveis (um para cada sete habitantes) e não é obvio que as pessoas que hoje dirigem automóveis viessem a preferir deixar de fazê-lo e entregar sua segurança a um computador, cuja capacidade de tomar decisões é discutível.

Além disso, outro problema decorre do fato de que automóveis sem motorista não vão ajudar a resolver a questão dos engarrafamentos de trânsito, que são um problema social da maior importância nos grandes centros urbanos. Ao contrário, poderão agravá-los, porque os computadores adotarão métodos de dirigir mais cautelosos do que os motoristas.

A adoção de automóveis autônomos cai, portanto, na categoria de pseudossoluções para as dificuldades que os países industrializados atravessam com a queda da produtividade. Ela aumentou muito no século 20, mas recentemente estagnou. Isso se deve ao fato de que os avanços tecnológicos do século 20 foram tão espetaculares e melhoraram de tal forma a vida de boa parte da população que não é nem necessário nem possível conseguir um aumento maior da produtividade, como houve no passado.

Os principais progressos que transformaram o mundo do século 19 no mundo que temos hoje foram o desenvolvimento de eletricidade, iluminação, elevadores, máquinas de uso doméstico, como lavadoras de roupa, geladeiras, ar-condicionado, e automóveis.

Repetir essa verdadeira revolução da tecnologia criando soluções para problemas que não existem, como automóveis sem motorista, não parece ser um caminho muito promissor.

*Professor emérito da USP

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