segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Marcus André Melo* - Polarização afetiva

- Folha de S. Paulo

O affair Janot marca a escalada do conflito no ciclo da Lava Jato

A polarização afetiva que se assenta em emoções negativas (desconfiança, desprezo, aversão) dirigidas a grupos políticos rivais é fenômeno novo nas democracias, mas no Brasil adquiriu especificidades: ela foi magnificada devido ao cataclismo produzido pela exposição pornográfica da corrupção.

O debate sobre seus determinantes e sobre se ela é maior entre as elites ou massas produziu duas explicações rivais. A primeira é que a polarização é fundamentalmente um fenômeno das elites --um subproduto do acirramento da competição política.

A segunda é que a polarização é social e resulta da sobreposição de identidades: grupos homogêneos fazem escolhas que as alimentam ("partisan sorting"). Nos EUA, por exemplo, os afro-americanos e evangélicos têm optado pelo partido democrata e republicano, respectivamente, e essa superidentidade acaba influenciando outras escolhas.

Ocorre assim o chamado efeito halo, pelo qual as emoções políticas contaminam outros domínios: ex. pacientes que votam democrata desconfiam de médicos republicanos; famílias crescentemente rejeitam parceiros para os filhos/filhas de partido político rival.

O desejo expresso por Rodrigo Janot de matar seu rival no STF é difícil de categorizar à luz da literatura sobre polarização porque é irredutível a uma dimensão ideológica/identitária, e por conter elementos de "vendetta" familiar. Não se trata tampouco de polarização afetiva, mas não há duvida que ela marca fortemente a recepção do episódio na opinião pública.

O episódio inscreve-se em um mecanismo mais amplo pelo qual o jogo institucional do controle —do qual a Lava Jato é a maior expressão— conclui um ciclo e sofre mudança qualitativa. O locus do conflito mudou. Localiza-se no colegiado de individualidades da cúpula do sistema —o STF, Presidência—, daí os duelos individualizados a que assistimos.

O ciclo da Lava Jato completa-se assim com uma escalada: as apostas subiram, elevando a intensidade do conflito. O STF não é só o julgador recursal —ele próprio passa a ser objeto potencial de controle. Quem controla os controladores? O problema torna-se insolúvel quando as ilicitudes são sistêmicas; solúvel mas altamente conflitivo quando são apenas numerosas. Mas aqui o risco é uma cornucópia de pedidos de impedimento e suspeição recíprocos.

O teste de stress das nossas instituições —que passa por impeachments e encarceramento de presidentes— é inédito para qualquer democracia. De qualquer modo, o país passa pelo equivalente funcional ao que no passado foram revoluções. Com retrocessos, as mudanças continuam. É difícil trocar a roda com a carruagem andando.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA

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