quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Maria Hermínia Tavares de Almeida* - Filigranas

- Folha de S. Paulo

O desrespeito às leis, por quem tem a obrigação de zelar por elas, torna tudo possível

Era o dia 9 de março de 2016, e os procuradores da Lava Jato discutiam a decisão, flagrantemente ilegal, do juiz Sérgio Moro de divulgar uma conversa entre a presidente Dilma e o antecessor Lula, gravada pela Polícia Federal. O áudio, amplamente reproduzido por toda a mídia, foi, como se sabe, a pá de cal no governo da petista. “Mas a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político”. Foi com essas preciosas palavras que o procurador Deltan Dallagnol respondeu aos argumentos de seu preocupado colega Andrey Borges de Mendonça.

Dallagnol tinha razão: o ambiente político e a repulsa geral à corrupção facilitavam o atropelo das leis.

Divulgadas domingo passado pelo site Intercept e esta Folha, as conversas entre justiceiros da Lava Jato assustam por revelar que membros do Ministério Público Federal pudessem considerar filigrana jurídica a legislação que rege a formação de provas contra acusados. Afinal, a instituição da qual fazem parte é um dos pilares do estado democrático de direito, ou, em português corrente, o governo das leis.

A atitude de Dellagnol diante da ordem jurídica não é um caso solitário. Também na semana passada, o governador de São Paulo, o prefeito do Rio e a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, tentaram censurar manifestações culturais que não se encaixam nas suas tacanhas noções do que venha a ser moralidade. Nesta semana, a censura chegou ao Ministério das Relações Exteriores.

No mundo todo, as maiores ameaças às democracias não são, hoje, os golpes de estado desembocando em ditaduras. O perigo é a lenta corrosão das instituições democráticas, promovida por governantes eleitos e agentes públicos dispostos a deixar de lado filigranas jurídicas, avançando sobre direitos individuais e ignorando travas legais. É quando, alerta o ministro do STF Celso de Mello, “trevas dominam o poder do Estado”.

É mais ou menos explicável que – em um país onde quase sempre a justiça vale apenas para alguns e os poderosos só excepcionalmente ficam sob a mira da lei – o homem da rua aplauda aqueles que prometem fazer Justiça para todos, mesmo que para isso acreditem estar moralmente autorizados a romper normas legais e violar direitos.

Perigoso engano. O desrespeito às leis, por quem tem a obrigação de zelar pelo seu cumprimento, torna tudo possível. Enquanto, no Rio, a enésima fase da Operação Lava Jato levava mais um corrupto para a cadeia, na Vila Joaniza, zona sul de São Paulo, seguranças privados do supermercado Ricoy, igualmente alheios a direitos e outras filigranas jurídicas, vibravam o açoite nas costas de um negro.

*Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap

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