segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Robert J. Shiller* - O discurso de Trump e a recessão

- Valor Econômico

Trump certamente tentará se aferrar a sua oratória, que funcionou tão bem por tanto tempo. Mas uma grave recessão pode ser sua ruína. E, mesmo antes de a catástrofe econômica sobrevir, a opinião pública pode começar a prestar mais atenção às aberrações dele

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, concluiu sua intervenção na recente cúpula do G-7 convidando os dirigentes ali reunidos a realizar o encontro do ano que vem em seu clube de campo de Doral, perto de Miami. Sua descrição do entorno lembra um mundo fantástico, de "edificações magníficas", cujos "salões de baile estão entre os maiores e melhores da Flórida". Foi mais um exemplo do discurso público de Trump, que trilha um caminho de crescimento ascendente há quase meio século.

Pode-se observar isso fazendo-se uma busca do nome de Trump em fontes noticiosas digitais, como o Google Ngrams. Seu discurso foi lento em crescer por contágio, mas já cresce há muito tempo, de tal forma que seu domínio do discurso público nos EUA parece quase inconcebível.

Parte do gênio de Trump foi procurar seguir, por toda a vida, os recursos que sustentam o contágio do discurso: ostentar encanto, cercar-se de lindas mulheres que aparentemente o adoram e simular exercer grande influência.

Trump abraçou firmemente essa estratégia de carreira em 1983, quando um artigo do jornal "The New York Times" intitulado "The Empire and Ego of Donald Trump" informou que ele já era, naquele ano, "um símbolo internacionalmente reconhecido da cidade de Nova York como a Meca dos super-ricos do mundo".

Examinemos seu interesse por luta livre profissional - uma forma de entretenimento que atrai multidões que, por obra de alguma estranha peculiaridade humana, querem acreditar na autenticidade do que é evidentemente encenado. Ele dominou o estilo de interpretação do setor e o usa, com eficiência, em todo lugar para aumentar seu contágio, tendo chegado até mesmo a participar de uma luta falsa em 2007.

Trump teve a sorte de ser convidado para ser o apresentador de um novo "reality show" de TV em 2004 chamado "The Apprentice" [no Brasil,"O Aprendiz", de mesmo formato], que apresentava competição empresarial na vida real. Vislumbrou imediatamente a oportunidade de uma vida inteira de aprimorar sua imagem pública, ficando famoso por um discurso rude, mas aparentemente voltado para o bem. "Você está demitido!", urrava ele, de modo grosseiro, para os perdedores de seu programa, ao mesmo tempo em que demonstrava algum calor humano tanto pelos ganhadores quanto pelos perdedores.

Agora que Trump consolidou uma retórica contagiosa, ele continua a viver fantasiosamente segundo a imagem de seu programa de TV. Na convenção do Partido Republicano de 2016, após retratar os EUA como uma potência em decadência, ele declarou "só eu conseguirei consertar o país". Correspondentemente, demitiu seus funcionários de alto escalão a um ritmo sem precedentes, até garantir que ninguém de porte independente continuasse a fazer parte de seu governo. Isso criou uma nova forma de absolutismo no governo dos EUA, as excentricidades de Trump, que, em vista da integração entre os EUA e as economias mundiais, tem capacidade para afetar o mundo inteiro.

Nada disso é original. Trump segue uma variante de um discurso recorrente que remonta a milhares de anos atrás. O satirista da antiguidade Luciano de Samósata, em um ensaio sobre oratória do século II, "Um Professor de Oratória", descreve para os potenciais líderes como é possível explorar ao máximo um discurso de poder por meio da prática de sua representação na própria vida:

"...Em tua vida privada, deves fazer toda e qualquer coisa, jogar dados, embebedar-se, viver no luxo e manter amantes, ou, em todo caso, vangloria-te disso, mesmo que não o pratiques, falando a todos sobre isso e mostrando recados que pareçam ter sido escritos por mulheres. Precisas pretender ser elegante, sabes, e te esforçar para dar a impressão de que as mulheres são devotadas a ti. Isso também dará mais força à tua retórica junto ao público, que inferirá disso que a tua fama chega até os gineceus".

Para Luciano, esse discurso não descreve a realidade, mas a cria. O que importa não é a essência, mas a persistência:

"Traga contigo, portanto, como o aspecto principal, a ignorância; em segundo lugar, a imprudência, e, além disso, a insolência e a ousadia. A modéstia, a respeitabilidade, a moderação e a capacidade de enrubescer podem ser deixadas em casa, pois são inúteis e representam, até certo ponto, um estorvo ao caso em questão... Se cometeres uma rata ou disseres algo absurdo, permite que a audácia seja tua única reparação".

É claro que, em uma era em que as pessoas normalmente não viviam tanto quanto atualmente, Luciano não poderia imaginar que alguém pudesse planejar manter coerência de discurso por 50 anos. Mas um discurso desse gênero tampouco pode ser sustentado para sempre. E o fim da confiança no discurso de Trump tende a se associar a uma recessão.

Durante uma recessão, as pessoas recuam e reconsideram suas opiniões. Os consumidores gastam menos, evitando compras passíveis de serem adiadas: um carro novo, reformas na casa e férias caras. As empresas gastam menos em novas fábricas e equipamentos e protelam as contratações. Elas não têm de explicar seus motivos fundamentais para fazer isso. Suas intuições e emoções podem ser suficientes.

Até agora, com seu modo de vida arrogante e ostentoso, Trump tem sido uma eloquente inspiração para muitos consumidores e investidores. A economia dos EUA tem se mostrado excepcionalmente "sólida", prorrogando a recuperação da Grande Recessão, [iniciada em 2008], que chegou ao seu ponto mais baixo exatamente quando Barack Obama assumiu a Presidência dos EUA, em 2009. A expansão dos EUA que se seguiu é a mais duradoura da série histórica, que remonta à década de 1850. Em última instância, a solidez do discurso é o motivo da solidez da economia americana.

Mas os palestrantes motivacionais muitas vezes acabam causando asco às próprias pessoas que inspiraram no passado. Observem-se as reações dos estudantes da Universidade Trump, a faculdade fraudulenta que seu homônimo fundou em 2005, que fechou, pressionada por várias ações judiciais, cinco anos depois. Ou considere-se o repentino desaparecimento político do senador americano Joe McCarthy em 1954, após ter levado sua retórica anticomunista longe demais.

Existe muita aleatoriedade no exercício da Presidência por Trump para ser possível fazer previsões convincentes. Ele certamente tentará se aferrar à sua oratória, que funcionou tão bem por tanto tempo. Mas uma grave recessão pode ser sua ruína. E, mesmo antes de a catástrofe econômica sobrevir, a opinião pública pode começar a prestar mais atenção às aberrações dele - e aos novos contradiscursos contagiosos que se sobrepõem ao seu. (Tradução de Rachel Warszawki)

*Robert J. Shiller, professor de economia na Yale University, é autor de "Narrative Economics: How Stories Go Viral and Drive Major Economic Events".

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