segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Cida Damasco - Reformas com justiça

- O Estado de S.Paulo

Quadro social mostra que acertar as contas é crucial, mas não é tudo

Da fartura de dados incluídos na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada na sexta-feira pelo IBGE, emerge um quadro preocupante de carências sociais no País. Só para começar, vamos a três das principais conclusões desse levantamento. De 2008/2009 para 2017/2018, a proporção de famílias das classes mais pobres, que recebem até dois salários mínimos por mês, aumentou de 21,6% para 23,9%. Além disso, quase 20% da renda do País está em poder de apenas 2,7% das 69 milhões de famílias consideradas pelo IBGE. E tem mais: gastos de consumo, saúde, educação, transporte e outros itens de “manutenção” das famílias engoliram 96% dos orçamentos – tornando praticamente inexistente o espaço para investimentos.

São números e números comprovando o que se assiste, há bom tempo, em várias dimensões da “vida real” no Brasil. Lojas com vendedores na porta em busca de consumidores arredios, filas quilométricas de candidatos a empregos, qualificados ou não, e, mais dramático ainda, um contingente cada vez maior de moradores de rua vivendo em “acampamentos” sob viadutos, em qualquer canto da cidade.

Analistas escoram-se em alguns indicadores de atividade mais recentes, para mostrar que a economia pode estar engatando um novo ciclo de crescimento, embora as projeções para a alta do PIB neste ano mantenham-se abaixo de 1%. Porém, mesmo que essa visão mais otimista acabe prevalecendo, a pesquisa do IBGE deixa evidente que é preciso um crescimento maior e, por mais tempo, para que as carências sociais sejam significativamente reduzidas.

Nesse quadro, as discussões sobre os efeitos das reformas econômicas em andamento no País ganham um significado maior. Como se pode ver, não basta “acertar as contas” dos orçamentos públicos, como muitas vezes sugerem discursos áridos de especialistas – ainda que acertar as contas seja uma etapa essencial do processo. É preciso ir bem mais longe e mirar na justiça social.

Na reforma da Previdência, que caminha nesta semana para a reta final, salvo novas rasteiras do Senado, tudo indica que a meta central foi atingida. Pelo menos o afastamento de um risco iminente de calote no pagamento das aposentadorias e pensões. Embora a mensagem não tenha convencido parte do público, a equipe econômica insiste que a mudança também vai desmontar uma “fábrica de desigualdades”. A pesquisa do IBGE reforça esse argumento, ao mostrar que o rendimento das famílias do topo da pirâmide com aposentadorias e pensões corresponde a quase 20 vezes o obtido pelas famílias da base – R$ 4,3 mil nas famílias que ganham mais de 25 salários mínimos, em confronto com R$ 207, para quem ganha até dois mínimos.

A Previdência do governo Bolsonaro, no entanto, mantém alguns “pecados”, como a concessão de regras especiais para policiais e o fato de, por enquanto, não ter chegado aos militares. Mais ainda, formou-se quase um consenso de que se perpetuam os benefícios ao Judiciário, apesar da retórica de que o sacrifício é para todos.

Há dúvidas também sobre o impacto social da reforma tributária, a bola da vez no Congresso. De acordo com os textos que já tramitam na Câmara e no Senado, a reforma concentra-se na fusão e simplificação dos impostos. O que, vamos reconhecer, não é pouca coisa. A proposta do governo, ainda em formatação, também tem esse objetivo. Mas originalmente ela não se esgotava aí. Uma desoneração da folha de pagamento das empresas estava atrelada à volta da CPMF, que enfrentou alto nível de rejeição e acabou derrubada pelo presidente. E o desafio agora é reconfigurar a proposta, sem a CPMF.

Mesmo assim, para ampliar o efeito social da reforma, seriam necessárias mudanças que alcançassem outras graves distorções do sistema tributário, como a regressividade. Ou seja, o predomínio dos impostos indiretos, cujo peso é maior justamente sobre a renda dos mais pobres. Segundo o IBGE, o pagamento de outras despesas correntes, incluindo impostos e contribuições trabalhistas, representa 11,7% dos orçamentos. Os sinais são de que a reforma não trará aumento de carga tributária. Melhor seria se as mudanças garantissem também uma distribuição mais justa dessa carga.

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