domingo, 20 de outubro de 2019

Dorrit Harazim - De guerras e paz

- O Globo

Jimmy Carter continua sendo, até hoje, o único presidente dos Estados Unidos que cumpriu o mandato sem ter de recorrer às armas

Jimmy Carter é o mais longevo ex-presidente dos Estados Unidos. Acaba de completar 95 anos e está há quase quatro décadas fora da Casa Branca. Eleito em 1978, exerceu com teimosia, fé no gênero humano e temor a Deus o mandato de 39º comandante em chefe do país. Foi um presidente azarão que incomodou meio mundo — inclusive a ditadura militar brasileira da época — com sua mania de falar e agir em defesa dos direitos humanos, sem arrefecer. Mudou pouco, de lá para cá.

Durante recente evento beneficente na cidade de Nashville, Tennessee, Carter subiu à tribuna com 16 pontos cirúrgicos à vista numa sobrancelha e um imenso hematoma no olho esquerdo. Tinha sofrido uma queda em sua casa de Plains, na Geórgia, mas, como não queria faltar ao encontro do Habitat for Humanity, programa de construção de moradias sociais que dirige há 36 anos, passou num hospital, fez curativo e seguiu para Nashville.

No fim de semana passado, Carter recebeu um telefonema de Donald Trump. Notícia insólita, visto que o atual ocupante da Casa Branca vive entrincheirado, às turras não só com o mundo, como em estado de animosidade pública com seus antecessores ainda vivos — Barack Obama, Bill Clinton, George W. Bush, além de Carter. Tem sido norma desde George Washington que todo presidente americano inicie uma aproximação com os que o precederam no Salão Oval, em boa parte para recorrer ao variado baú de conhecimento e expertise de quem já ocupou o cargo.

Essa confraria tem nome oficial, Clube dos Presidentes, discreta sede de quatro andares perto da Casa Branca, e um fascinante histórico de bastidores do poder. Em mais de dois séculos de história americana , o seleto grupo nunca pôde contar com mais de seis integrantes, uma vez que ex-presidentes também morrem. Um best-seller de anos atrás, “The President’s Club — Inside the World’s Most Exclusive Fraternity”, de Nancy Gibbs e Michael Duffy, retrata a confraria a partir de Harry Truman até a era Obama. Os relacionamentos desse seleto olimpo de ex-donos do poder com o titular são por vezes intensos e íntimos, hostis ou cheios de reservas, mas sempre respeitosos. Afinal, todos do clube estão unidos pela experiência, o dever, a ambição e as cicatrizes de terem comandado a nação. Sabem que juntos conseguem manter mais influência do que isolados. Quando estiveram no poder, todos recorreram a um ou vários ex do clube.

Menos Donald Trump, que não confia em ninguém.

Daí a surpresa quando Jimmy Carter mencionou o telefonema recebido da Casa Branca aos fiéis da congregação onde dá plantão todos os sábados. Trump tinha motivos para estar atordoado com o processo de impeachment desencadeado contra ele na Câmara. Também sabia-se lanhado perante intervencionistas tanto democratas como republicanos, devido à sua brusca decisão de retirar o apoio militar americano aos curdos da Síria sob ataque da Turquia. Mas o presidente não foi se aconselhar com Carter sobre esses dois focos em combustão.

Queria falar de China. Estava preocupado com a guerra comercial que desencadeara contra Pequim, e com a perspectiva de o país asiático tornar-se a primeira economia do mundo a partir de 2030. Carter, em cujo governo as relações entre EUA e China foram normalizadas por inteiro, não tinha fórmula mágica a oferecer. Até porque ele mesmo não parece temer o que muitos já chamam de “Século Chinês”. Naquela manhã, sua pregação fora sobre o tema “paz” e é provável que tenha dividido com Trump a linha de pensamento desenvolvida para os congregados batistas:

“Vocês sabem quantas vezes a China entrou em guerra com um país desde 1979?”, perguntou, e foi logo respondendo: “Nenhuma”. “Enquanto isso”, prosseguiu, “os Estados Unidos se tornaram a nação mais belicosa do mundo”. Lembrou que em 242 anos de história, a sociedade americana vivenciou apenas 16 anos sem envolvimento em alguma guerra, golpe, insurreição ou ocupação militar no planeta. De fato, por vezes, o país travou combates históricos em defesa da civilização e de valores democráticos. Outras vezes nem tanto. Tudo isso com o seu custo. Segundo levantamento feito em 2018 pelo Instituto de Assuntos Internacionais da Brown University, só as intervenções militares de Washington desde 2001, ano do ataque terrorista islâmico às Torres Gêmeas, já engoliram US$ 5,9 trilhões (equivalente a R$ 24,3 trilhões) do Tesouro americano.

“A China não gastou um único penny com guerras externas neste período; em compensação, tem 19 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade”, prosseguiu Carter em sua catilinária. Ele sabe que qualquer comparação entre China e Estados Unidos precisa, antes de tudo, passar pelo abismo que separa um regime totalitário de uma nação democrática com liberdades plenas. Ainda assim, Jimmy Carter tem credencial para falar sobre o tema: ele continua sendo, até hoje, o único presidente dos Estados Unidos que cumpriu o mandato sem ter de recorrer às armas. Tinha servido na Marinha na Segunda Guerra Mundial. Já Donald Trump nunca serviu ao país. À época em que o serviço militar ainda era obrigatório nos Estados Unidos, o atual presidente escapou cinco vezes de ser alistado para a Guerra do Vietnã. Nela morreram 58.220 americanos de uniforme.

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