sexta-feira, 25 de outubro de 2019

José de Souza Martins* – Mãos limpas

- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

Comédia de Juca de Oliveira faz a síntese perfeita de nossa miséria política, da abundância de truques e disfarces que tecem a rede de cumplicidade que faz dos poderosos meros cômicos do poder

Estreou em São Paulo, nestes dias, a comédia “Mãos Limpas”, de Juca de Oliveira. Meu confrade na Academia Paulista de Letras, onde nos sentamos um ao lado do outro, sussurrou-me ele, algumas vezes, tópicos da peça em elaboração. Não inventava nada, a não ser na fórmula e na forma propriamente artísticas de sua aguda percepção da realidade.

Todos sofríamos, e ainda sofremos, com a visibilidade pública de uma sina em que fica claro que somos seres meramente adjetivos do sistema político. Juca, no entanto, reconhece, na sucessão dos eventos, nos episódios e depoimentos recolhidos na Operação Lava-Jato, a matéria-prima de sua bela e oportuna arte.

Juca fez a síntese perfeita de nossa miséria política, da abundância de truques e disfarces que tecem a rede de cumplicidades que faz dos poderosos meros cômicos do poder. Os diferentes perfis e as diferentes personagens se juntam no desempenho de um elenco de atores de grande reputação e extraordinária competência.

Todos atados entre si como artífices de uma trama em que o cômico nasce no mero desencontro entre os valores próprios da verdadeira política e a realidade nua e crua do modo como as personagens se desconstroem pelo toque mágico da corrupção e do fascínio do poder.

A peça de Juca de Oliveira me fez rever o grande número de episódios minúsculos e fragmentários que, desde 2004, nos assombra a todos. A corrupção, sim, mas também nossa criatividade corruptiva, nos detalhes de um rico artesanato de ladrão competente. Aquele que rouba uma nação inteira e ainda elabora o pretexto de sua falsa inocência e das razões para se apropriar do alheio. Processados e presos, consideram-se injustiçados. São coautores da comédia, cujo maior protagonista é nossa inocência carneiril.

Os cúmplices desse sistema, os eleitores sectários mas não politizados, os reacionários por convicção e até de nascimento, os inocentes úteis e convenientes, ignoram. Muitos deles, diariamente, acusam o comunismo por nossas misérias. Mas, qual comunismo se nunca tivemos no país um regime comunista? Ignoram que o comunismo caiu com o muro de Berlim, com o debilitamento das esquerdas, mesmo as que não se alinhavam com partido comunista. Os ignorantes do capitalismo nativo ignoram, sobretudo, que são os maiores inimigos do capitalismo. Porque o destroem por dentro.

O melhor conhecedor do capitalismo foi um alemão anticapitalista chamado Karl Marx (1818-1883). Decifrou-lhe os mistérios e contradições.

Há alguns anos, conheci numa conferência no Centro Cultural Britânico uma sobrinha de Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948), um dos maiores empresários brasileiros, engenheiro formado pela Escola Politécnica da USP, um dos fundadores e presidentes da Fiesp, e fundador da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Contou-me ela que a tia, dona Raquel Simonsen, descobrira um dia no móvel de cabeceira do marido um exemplar de “O Capital”, de Karl Marx.

Autodidata nas questões sociais, capitalista inteligente e culto, Simonsen sabia que em Marx estavam apontadas e analisadas as fragilidades do capitalismo de que ele era um dos melhores representantes e defensores. Se a esquerda também lesse Marx, não cometeria os erros que têm sido frequentes em sua história, apesar dos acertos interpretativos da sociologia marxiana.

Marx cientista tinha a clareza que o marxismo ideológico não tinha sobre o mundo capitalista, especialmente sobre as sociedades limítrofes da época, como a russa e, hoje, as latino-americanas e as africanas.

Simonsen, nativo que era e conhecedor de sociologia, sabia que em Marx havia não só uma teoria do desenvolvimento do capitalismo, mas também uma teoria do capitalismo subdesenvolvido e tropical, vitimado pelo desenvolvimento desigual, pelo desencontro entre o desenvolvimento econômico e o subdesenvolvimento social e político.

De suas empresas, como a Cerâmica São Caetano, na qual trabalhei quando era adolescente, fazia laboratórios de superação do capitalismo botucudo e antissocial. Outros empresários, ao longo de nossa história, fizeram o mesmo: Jorge Street (1863-1939), Salvador Arena (1915-1998).

Sem contar os que transferem parte de seus ganhos, algumas vezes descomunais, para a educação e a alta cultura, a ciência, a arte. Protagonistas de um capitalismo social, que é a única salvação para o capitalismo. Um capitalismo socialmente honesto, comprometido com a democracia do pensamento crítico. Ou será impossível o capitalismo honesto e democrático?

A peça de Juca de Oliveira nos salva da sisudez falsa e infantil que chegou ao poder como cúmplice de um capitalismo baseado na ignorância. Ela nos restitui um dos mais inteligentes aspectos da consciência crítica, a da comédia e do riso. Gargalhadas neles!

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociabilidade do Homem Simples" (Contexto).

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