sexta-feira, 4 de outubro de 2019

José de Souza Martins* – Nosso coração amazônico

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

A reação do governo brasileiro ao sínodo, convocado em outubro de 2017, quando esse governo era mera e longínqua hipótese, foi descabida e despropositada

No próximo dia 6, o papa abrirá em Roma o Sínodo dos Bispos que tratará de Novos Caminhos para a Igreja e para Uma Ecologia Integral. A iniciativa católica é uma iniciativa ecumênica. Envolverá o elenco de seis delegados fraternos, membros de outras igrejas cristãs com missões na Amazônia, como a Igreja Presbiteriana, a Igreja Anglicana, a Assembleia de Deus e a Igreja Evangélica de Confissão Luterana.

O sínodo tratará das consequências religiosas e sociais das transformações econômicas e ambientais que comprometem a relação homem-natureza. Nele se retomará ao tema essencial da Parábola dos Talentos. Em nome da fé, o encargo recebido pelo homem de cuidar do próximo e da natureza que lhe é essencial será verificado. Um grande exame de consciência num mundo ameaçado pela cobiça e pela irresponsabilidade, na alienação dos que optaram por servir a si mesmos em vez de servir ao outro. O outro, personificado nos milhões de seres humanos que vivem no bioma amazônico, distribuídos em nove diferentes países.

A reação do governo brasileiro ao sínodo, convocado em outubro de 2017, quando esse governo era mera e longínqua hipótese, foi reação descabida e despropositada. Revelou despreparo e desinformação científica, histórica e antropológica. O governo alardeou que o sínodo seria espionado. Como se tivesse sido convocado para conspirar contra os despistados do poder. Argumentos relativos à geopolítica foram usados. Qual geopolítica? Nossa geopolítica, na questão amazônica, tem sido a geopolítica das vacas e do ouro, do envenenamento dos rios e da derrubada e queima da floresta para cobrir a terra de pastos ralos, para exportar carne ou soja, cujos rendimentos concentrados não resolveram os problemas de um país carente de uma política econômica e social de distribuição de renda.

Nesse sentido, a geopolítica das vacas sente-se ameaçada pela geopolítica das gentes, dos humanos cada vez mais agredidos pelos equívocos de políticas de ocupação predatória da Amazônia.

Sem a missão encarnada da igreja, a geopolítica da pátria perderá, como está perdendo, para a irresponsável política da bajulação de potências econômicas e militares, a de vergonhosa renúncia ao que queremos e podemos ser.

Foi em nome dos valores dessa missão que a pátria se constituiu, mesmo na tensão entre a Coroa interesseira e sovina, de um lado, e as ordens religiosas católicas e missionárias, especialmente a dos jesuítas, de outro. Nas brechas da brutalidade da conquista. Elas esculpiram o perfil do brasileiro. O que foi o inevitável contato entre culturas não favoreceu o isolamento identitário dos grupos tribais. Ele sempre impõe algum grau de fusão e de invenção social.

Muito antes de que existisse o Exército, defensor da pátria, a igreja definia a alma do que viria a ser o Brasil que conhecemos. As cartas jesuíticas, como as de Anchieta e de Nóbrega, narram a invenção de uma pátria brasileira. O que somos já está lá na antropologia da descoberta dos povos indígenas, como sujeitos de uma identidade própria na unidade de uma nação brasileira como confederação de diferenças identitárias. Nossa mestiçagem é isso. Seríamos o outro dessa invenção para continuarmos a ser os mesmos. O que Malinowski define como fator comum na mudança cultural.

O que somos está na invenção de uma língua brasileira, tão brasileira, que o rei de Portugal, em 1727, a proibiu, pela ameaça que representava à dominação portuguesa, em conexão com as revoltas nativistas. Na guerra dos Emboabas, os paulistas falavam a língua geral, o nheengatu, em nome da pátria, que mencionaram, a língua que Anchieta sistematizou na “Arte da Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”. A língua da esperança, em que substantivos podem se referir a coisas que foram, não são mais, porém continuam sendo porque são outra coisa do mesmo.

O Sínodo da Amazônia é um grande chamamento em favor da reconciliação do homem com a natureza mediadora de sua condição humana. Nos últimos 50 anos, a Amazônia foi invadida, depredada, saqueada, destituída de sua função de servir à humanidade do homem.

As populações indígenas vivem uma nova realidade, a da inevitabilidade da ressocialização que sofreram. Tribos estão mandando seus jovens para as universidades, para decifrar os brancos, para fazer cursos como os de direito, engenharia, medicina, veterinária. Para voltar às aldeias e fazer uma ponte cultural contra os esmagamentos do capitalismo subdesenvolvido e tirar dos brancos tudo aquilo que exalta e protege a condição humana. Eles estão nos protegendo, ao se protegerem criativamente. Ao se oporem ao saque do que é deles e por isso é nosso: florestas, rios, terras.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).

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