quarta-feira, 30 de outubro de 2019

José Eli da Veiga* - O trevo da distopia

- Valor Econômico

A vida inteligente está ameaçada, mas principalmente pela possibilidade de que venham a ser usados os arsenais atômicos

Está em ascensão a crença em irrevogável autoextermínio da humanidade. A tal ponto que nem caberia, nesta página, a lista de recentes bons livros e artigos que robustecem tal distopia. A justificativa é quase sempre ambiental, com maior realce ao imbróglio climático, muitas vezes acompanhada de prognósticos dos mais sombrios sobre o uso de novas tecnologias, com destaque à inteligência artificial. Com tal combinação, muito em breve só sobrariam vivos, na Terra, os tardígrados.

Costuma estar fora desta onda qualquer preocupação com a incerteza mais garantidora de tão lúgubre desfecho: a volta da ameaça de um “inverno nuclear”, fato que mereceu destaque aqui no Valor do último 13 de setembro (p. 14-15 do caderno EU& Fim de Semana). É esquisito que o pior agouro - o de guerra nuclear - fique debaixo do tapete em algaravia sobre aquecimento global e más condutas tecnológicas, os menos prementes dos três perigos.

Uma boa especulação psíquica evocaria os mais fortes arquétipos sobre a natureza. Alguns tendem a achar que ela é caprichosa, delicada, frágil, precária e efêmera. Outros, que ela é bem robusta, estável e previsível. Para os primeiros, só restaria aos humanos o dever de agir como se estivessem pisando em ovos, sem qualquer pretensão de gerenciamento ambiental. Ao contrário dos que apostam na ciência para um manejo que contrabalance os males impostos pelo processo civilizador.

Se fossem mais seguras as evidências científicas sobre o trevo das incertezas ditas existenciais - a nuclear, a ambiental e a tecnológica - o mais provável é que algum consenso sobre o futuro das sociedades começasse a ser formado. Porém, os resultados obtidos nas últimas décadas pela ‘Ciência do Sistema Terra’ estão longe de impedir o predomínio das inclinações subjetivas sobre a relação dos humanos com a natureza, além de subestimação do vetor nuclear.

Tais circunstâncias obrigaram o filósofo francês Jean-Pierre Dupuy, professor de ciência política em Stanford, a condenar o uso de seus argumentos pelos autointitulados “colapsólogos”. Autor do best-seller “Pour un Catastrophisme Éclairé”, de 2002 (traduzido, dez anos depois, pela Editora É Realizações, com o título “O Tempo das Catástrofes”), ele chama a atenção para o mais grave erro conceitual dessa tribo, em texto recém-publicado no website AOC media: (https://aoc.media/): o estranho pressuposto de que todos os sistemas complexos seriam mais frágeis.

É equivocada a afirmação de que um colapso será inevitável em futuro próximo porque estruturas cada vez mais globalizadas, interconectadas e travadas tornam a biosfera muito mais vulnerável a perturbações internas ou externas, engendrando uma dinâmica de derrocada sistêmica. Os mais resilientes ecossistemas naturais são justamente os com redes mais complexas e mais interconectadas. Diferente das redes artificiais, que arbitrária e abusivamente também vêm sendo chamadas de “ecossistemas”. Estas, sim, podem se tornar mais vulneráveis com a elevação da complexidade.

Então, em vez de condenada ao autoextermínio por razões ambientais e/ou tecnológicas, a vida inteligente do gênero humano está, sim, ameaçadíssima, mas principalmente pela possibilidade de que venham a ser usados os atuais arsenais atômicos. E, se isto for evitado, as perguntas mais pertinentes incidem sobre os tipos de influência que terão as outras duas folhas do trevo sobre o desenvolvimento socioeconômico e político.

Tragédias climáticas provocarão guerra nuclear? Outros danos ambientais e extravios digitais causarão sérias degradações da qualidade da vida? Restrições sobre os recursos naturais (água, ar, solos, etc) culminarão em modos autoritários de gestão, após violentas lutas de apropriação? Ou será que suscitarão soluções inovadoras, abrindo caminho para um futuro melhor?

Combinando tais perguntas a várias outras sobre emancipação individual ou mutações nas atividades do cotidiano, pode-se perceber qual é a atual encruzilhada. Sociedades futuras moldadas por normatizações sociais não consentidas, necessárias às incontornáveis transformações ecológicas e econômicas? Ou sociedades futuras estruturadas por um movimento fortemente individualista, contrário às institucionalizações?

Embora concorrentes, os polos desta contradição não são antagônicos. Nutrem-se um do outro e se completam enquanto se opõem. Tudo indica que, em vez de ou/ou, trata-se de mais uma das muitas conjunções de simultâneos e/e. O que resulta em, no mínimo, quatro cenários - também não incompatíveis - cuidadosamente descritos em estimulante relatório da associação Futuribles International: sociedade sob vigilância, sociedade algorítmica, sociedade do ‘eu’ e sociedade de arquipélagos.

Tão estimulante exercício de antecipação - este sim antagônico à distopia - está agora disponível em português, no número 2 da excelente revista Futuribles, publicada pela organização Plataforma Democrática, uma parceria da Fundação FHC com o carioca Centro Edelstein.

*José Eli da Veiga, professor sênior da USP

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