terça-feira, 8 de outubro de 2019

Míriam Leitão - A difícil conciliação entre atos e palavras

- O Globo

Bolsonaro é contra o fim do monopólio da Caixa no FGTS. Essa é só uma das interferências que derrubam a ideia de autonomia de Paulo Guedes

O presidente Jair Bolsonaro disse que a economia é “100% com o Guedes”, na entrevista publicada pelo “Estado de S. Paulo” no domingo, mas ontem mesmo ele disse que não será quebrado o monopólio da Caixa Econômica na administração do dinheiro do FGTS. Essa é apenas mais uma interferência.

Desde o começo do governo, Bolsonaro já demitiu o presidente do BNDES e o secretário da Receita, derrubou a proposta de reforma tributária formulada no Ministério, vetou uma publicidade do Banco do Brasil e suspendeu um aumento do diesel. Guedes não tem evidentemente a carta branca e a autonomia que Bolsonaro sempre disse que ele teria.

Qualquer manual básico de liberalismo econômico criticará monopólios em geral. No caso da Caixa com o FGTS é pior porque é uma poupança compulsória do trabalhador à qual ele não tem acesso, que é sub-remunerada e que o banco estatal cobra o valor abusivo de 1% de taxa de administração.

O que estava sendo negociado entre a Câmara dos Deputados e o governo é que outros bancos tivessem acesso a esse dinheiro, quebrando-se o monopólio da Caixa. Ontem o presidente Bolsonaro avisou que era contra essa medida.

O deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) disse que nem entendeu o comentário do presidente, porque ele estava negociando o texto com técnicos do governo. E disse que vai mantê-lo.

Para ser mais liberal, a proposta tinha que dar ao trabalhador, dono do dinheiro, a portabilidade da sua conta. Ele deveria ter o direito de escolher em que banco deixar o seu dinheiro, e isso fomentaria a competição que reduziria as taxas e elevaria a rentabilidade.

Do ponto de vista liberal o projeto é insuficiente. A liberdade tinha que ser do trabalhador e não do banco. Mas o que o presidente está dizendo é que nem essa proposta restrita ele aceitou. A Caixa tem tido lucro fácil de R$ 5 bilhões por ano com esses recursos.

Tudo o que o governo Bolsonaro fez nesta área foi seguir os passos do governo Temer de ampliar as chances de o cotista do FGTS ter acesso ao próprio dinheiro.

“Quem demitiu o Marcos Cintra foi o Guedes. Não interfiro nestas questões”, disse o presidente Bolsonaro na entrevista ao “Estadão”. O governo precisa entrar num acordo, porque o vice-presidente, Hamilton Mourão, que estava no exercício da Presidência naquele momento, disse que “foi decisão do presidente” e acrescentou: “Guedes cumpre a decisão do presidente”. E por que foi a demissão? Porque Bolsonaro interfere “nestas questões”, ao contrário do que diz.

O ministro até lamentou a queda. “Morreu em combate nosso valente Cintra.” Ele combatia em favor de um imposto com cara e jeito de CPMF, a partir do qual se faria a proposta de reforma tributária, que teria a desoneração da folha salarial. O ministro segue defendendo essa ideia.

Na entrevista, Bolsonaro disse uma frase curiosa. “Eu posso interferir na Caixa. Eu não posso interferir é no Banco do Brasil, porque não pode, teoricamente né?” Nem teoricamente nem na prática ele deveria interferir em qualquer deles até porque o país viu o que acontece quando as empresas públicas — de capital fechado como a Caixa, ou de capital aberto como o Banco do Brasil — tomam decisões por razões políticas.

Não pode, por exemplo, transformar a Caixa em um descarado departamento de censura prévia, que inclui até o controle da posição política dos artistas.

Modesto, o presidente diz que faz apenas “sugestões” a Paulo Guedes. “O que eu transmito a ele é o anseio popular. Não pego na rua mais, não posso estar na rua, mas pego nas mídias sociais.” Alguém precisa avisá-lo que o que ele vê nas redes pode não ser a opinião pública. A internet tem bolhas, fake news — ele até já divulgou algumas — robôs, perfis falsos.

Mas o mais relevante na entrevista é que Bolsonaro não consegue revelar, mais de nove meses depois de iniciado seu governo, alguma ideia concatenada na economia ou fora dela. É uma fala rasa, de alguém que não tem projeto. “Se a gente se der bem, por exemplo, o Rodrigo Maia vai botar em votação o projeto do porte de armas, está acertado.

Ele vai botar também as mudanças no Código Nacional de Trânsito. Parece que não é nada, mas quando você passa de cinco para dez anos, a validade da carteira, todo mundo ganha”. É isso.

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