quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Para Eros, decisão não pode ser modulada

Segundo autor de dispositivo constitucional sobre trânsito em julgado, cumprimento de pena após segunda instância fere cláusula pétrea

Por Cristian Klein | Valor Econômico

RIO - No julgamento que o Supremo Tribunal Federal (STF) realiza hoje, a Corte tende a retomar o entendimento de que réus só podem ser presos depois de esgotados os recursos nos tribunais superiores, e não após decisão condenatória em segunda instância, como o STF definiu em 2016.
Caso a expectativa se confirme, o Supremo voltará a adotar jurisprudência anterior, estabelecida pela própria Corte em 2009.

Relator do caso à época, o ex-ministro Eros Grau, de 79 anos, afirma que, assim como quando era juiz, continua defensor do mesmo entendimento, embora, pessoalmente, gostaria de ver todos os condenados presos até antes do segundo grau de jurisdição.

“Como cidadão, gostaria de prender após a primeira instância. Mas o que o juiz deve fazer é aplicar a Constituição e as leis. É o que está escrito”, afirmou ao Valor. Eros refere-se à redação do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Trânsito em julgado é a expressão para a decisão judicial da qual não se pode mais recorrer.

O ex-ministro diz que o STF pode e costuma mudar seu entendimento quando um determinado trecho da Constituição permite mais de uma interpretação. Mas que, neste caso, a vedação à prisão após segunda instância “está escrita com todas as letras”. “A única maneira seria alterar a Constituição. E quem faz isso é o Poder Legislativo, não é o Judiciário”, diz.

Em 2009, Eros Grau liderou a corrente majoritária que defendeu o chamado princípio da presunção da inocência e concedeu habeas corpus a um fazendeiro condenado a sete anos e seis meses de reclusão por tentativa de homicídio. Ao evitar a execução provisória da pena, o réu Omar Coelho Vitor recorreu em liberdade e jamais foi punido, pois o processo prescreveu.

Quatro ministros que ainda estão no STF acompanharam o voto de Eros Grau: Marco Aurélio Mello, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Esse último mudaria depois sua posição, permitindo a formação de maioria a favor da prisão após a condenação em segunda instância, confirmada em três julgamentos ocorridos em fevereiro (novamente por 7 a 4), outubro (6 a 5) e novembro (6 a 4, Rosa Weber não votou) de 2016.

Em abril de 2018, contudo, quando o STF retomou o assunto e negou habeas corpus ao ex-presidente Lula, pelo placar de 6 a 5, Gilmar mudou de novo seu entendimento, voltando à posição de 2009. Desde então, além dele, Dias Toffoli e Rosa Weber também oscilaram. O voto da ministra é considerado crucial pois a expectativa é que, ao analisar o mérito da questão, e não uma liminar, ela volte à posição original, contrária à execução de pena quando ainda cabe recurso. Caso se forme nova maioria, a decisão deve beneficiar Lula, o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, e outros condenados da Lava-Jato.

A possibilidade de que a Corte faça uma modulação, restringindo o alcance da nova jurisprudência para os praticantes de crime de colarinho branco, deixando de fora crimes como homicídio, é criticada por Eros Grau.

“Seria uma maneira de descumprir a Constituição. Vai reforçar aquela velha história de deixar que os mais ricos, que podem contratar bons advogados, fiquem soltos e os pobres irem para a prisão”, diz. O ex-ministro concorda que há muita reação de setores da sociedade que temem que a medida prejudique a Lava-Jato. Ele lamenta a movimentação de caminhoneiros, que ameaçam fazer greve para pressionar o STF: “Hoje o Brasil está complicado. Tem a reação desses ‘bolsonaros’. É um negócio terrível”.

Responsável pela introdução do inciso LVII no artigo 5º da Carta de 1988, o ex-senador constituinte e ex-governador do Espírito Santo José Ignácio Ferreira, de 80 anos, afirma que “parte da sociedade está com sangue na boca” e vê a pena como instrumento de vingança e não de recuperação. Ferreira conta que era um dos quatro relatores-adjuntos da Assembleia Constituinte - ao lado de Fernando Henrique Cardoso (SP), Nelson Jobim (RS) e Wilson Barbosa Martins (MS) - e se inspirou na Constituição portuguesa para sugerir o item que estabelece a presunção da inocência. Ele lembra que “não houve nenhuma resistência”, porque havia todo um clima pós-ditadura militar em prol da liberdade.

Hoje, diz, o país está dividido mas a solução para se reduzir a sensação de impunidade passa por outros caminhos. “A massa lúcida quer respeito ao Judiciário num momento em que se está apupando juízes. Isso preocupa. A saída é tornar o Judiciário cada vez mais eficiente. É um problema de gestão. Pode-se mudar leis ordinárias e permitir mais agilidade. Não é um bicho de sete cabeças julgar com rapidez”, sugere Ferreira, que havia sido presidente da seção capixaba da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), antes de se eleger ao Congresso. Era do PMDB e depois foi um dos fundadores do PSDB, em 1988.

Questionado se o Brasil não é um ponto fora da curva e fica distante de países que permitem prisão já depois de uma condenação em primeira instância, o ex-governador concordou: “Fica, mas de qualquer maneira é o nosso caso, temos isso aí. É a nossa Constituição”.

Na mesma linha de Eros Grau, o ex-senador argumenta que o dispositivo é “claríssimo” e não seria passível de alteração, mesmo por proposta de emenda à Constituição, pois integra as chamadas cláusulas pétreas.

“O inciso é ‘imexível’, como disse [Rogério Magri] um ministro do [ex-presidente Fernando] Collor. Só por meio de uma nova Constituição”, afirmou.

Ferreira, que já esteve no centro de escândalo de corrupção, diz não acreditar que a mudança de jurisprudência do STF, há dois anos, ocorreu por movimento político da Corte, em resposta à pressão lavajatista. “Foi necessidade de dar celeridade às decisões do Judiciário”, afirma. Procurador de Justiça aposentado, Ferreira atribui ao trabalho da jurista Ada Pellegrini Grinover (1933-2017) a influência maior da doutrina em que se baseou o comportamento da Corte, a partir de 2016.

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