terça-feira, 22 de outubro de 2019

Por que os chilenos se ressentem da desigualdade mesmo com a maior renda per capita da região

Apesar de queda na pobreza, disparidade permanece e se reflete em espaços urbanos segregados e capacidades diferentes de influência e poder

André Duchiade | O Globo

A admiração que muitos na América do Sul sentem pela economia do Chile, com seu crescimento esperado para 2019 de 2,5%, inflação anual de 2% e renda per capita de US$ 16 mil — são US$ 9,2 mil no Brasil, segundo o Banco Mundial —, ofusca, muitas vezes, a percepção de um sentimento de mal-estar social entre muitos chilenos, afirmam economistas de Santiago.

O abalo na imagem de estabilidade provocado pelos atuais protestos permitiu entrever uma face oculta do país, marcado por desigualdades acentuadas em indicadores como saúde, educação, aposentadoria e transportes.

— O Chile é um país notoriamente desigual, em que boa parte da população se vê apertada por muitas variáveis. Há muitos chilenos que vivem no limite do que precisam — afirmou o professor de Economia da Universidade do Chile Manuel Agosín.

Agosín cita a precariedade de “todos os direitos sociais” como gatilho para as manifestações pacíficas — destacando que, ao lado delas, há “muita gente que se aproveita da ausência de policiais para vandalizar e incendiar bens públicos”.

Segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) de 2017, embora a pobreza no Chile tenha caído nos últimos 30 anos, “a desigualdade segue sendo uma pesada herança”, que se reflete em “espaços urbanos segregados, tratos discriminatórios e capacidades muito diferentes de influência e poder”.

Enquanto a pobreza caiu de 68% em 1990 para 11,7% em 2015, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade, avançou muito menos, de 0,52 para 0,47 — muito acima do de países europeus (Portugal marca 0,32), e próximo do da Zâmbia (0,49).

Segundo o estudo da ONU, em 2015 o 0,1% mais rico dos chilenos concentravam 19,5% da renda do país, 1% detinha 33% e os 5% mais ricos ficavam com 51,5%. O país integra a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), 70% dos chilenos ganham menos US$ 770 dólares mensais, valor baixo para o custo de vida local.

Estes números fazem do Chile um país “de grande desigualdade socioeconômica, com uma concentração no topo, que repousa sobre mecanismos de reprodução profundamente enraizada na institucionalidade, cultura e estrutura produtiva do país”, diz o Pnud.

O fosso social, segundo o Ministério de Desenvolvimento Social do Chile, vem se acentuando. Em 2017, a renda dos 10% mais ricos da população do Chile foi 39,1 vezes mais alta do que a dos 10% mais pobres, em comparação aos 30,8 vezes de 2006. O custo de vida também subiu, sobretudo em Santiago, onde o preço da habitação aumentou 150% na última década, enquanto os salários só cresceram em média 25%.

— É uma sociedade dividida em termos educacionais, de acesso à saúde e em termos territoriais, com uma elite com acesso ao mercado e uma grande massa da população que vive em termos precários — afirmou Dante Contreras, professor de Economia da Universidade do Chile e diretor do Centro de Estudos de Conflito e Coesão Social.

A saúde é um dos serviços com maiores queixas. As reformas liberais promovidas durante a ditadura de Pinochet impuseram uma contribuição obrigatória para assalariados e aposentados, que pode ir para o serviço público ou seguros privados. O país tem o terceiro maior gasto com saúde privada na OCDE, só atrás de Estados Unidos e México.

A saúde pública foi precarizada, sem qualquer subsídio para a compra de remédio. Só 17,5% dos 10% mais pobres da população confia que terá atenção médica oportuna em caso de uma doença grave, em oposição a 63,3% dos 10% mais ricos.

Nos transportes, o preço se manteve estável desde 2015, mas aumentou quase 40% no quinquênio anterior, o que fez do transporte público de Santiago um dos mais caros do mundo, proporcionalmente à renda média da população, segundo o diretor do Centro de Inovação em Transporte e Logística da Universidade Diego Portales, Franco Basso.

Um ranking de 56 países elaborado por ele, a partir de dados do Deutsche Bank, põe o Chile em novo lugar. Para uma renda média de US$ 939, os chilenos gastam US$ 58 por mês (6,2% da renda total) em locomoção, o que os deixa, no continente, atrás só de Rio de Janeiro e São Paulo. “Além dos problemas criminais que Santiago está enfrentando, há um problema fundamental associado ao custo do transporte público na cidade”, disse Basso no Twitter.

O acesso à educação superior aumentou muito de 1990 a 2015, indo de 20,3% para 54,9% dos jovens entre 20 e 24 anos. Os jovens de famílias de maior renda, porém, têm acesso a universidades de melhor qualidade, enquanto os demais vão para centros técnicos e universidades privadas de baixa qualidade, além de precisar lidar com dívidas estudantis posteriores.

A desigualdade salarial se reflete no sistema de aposentadorias, baseado em um modelo de capitalização que chegou a ser cogitado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para o Brasil. Primeiro país do mundo a privatizar a Previdência, em 1981, no Chile cada trabalhador cuida de sua própria poupança, depositada em uma conta individual, em vez de ir para um fundo coletivo.

Por motivos variados, como falta de renda, muitos idosos não pouparam. Apesar de o país ter a mais alta renda per capita mais alta da América Latina, os aposentados chilenos recebem,em média, de 30% a 40% do salário mínimo, de 241 mil pesos chilenos (cerca de R$ 1.365).

O resultado é uma ampla percepção social de desigualdade, segundo o estudo do Pnud.
— O aumento da passagem do metrô foi só a gota d´água que transbordou, as manifestações são contra as dificuldades para sobreviver — afirmou Agosín.

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