terça-feira, 29 de outubro de 2019

Robinson Borges - Por trás desse sorriso

- Valor Econômico

Sinais de desigualdade ajudam a explicar o sucesso de “Coringa”

Compreender a dimensão da desigualdade na sociedade, entender suas razões estruturais e discutir amplamente propostas para diminuí-la, longe do binarismo, é o caminho para afastar figuras insanas elevadas à categoria de heróis na vida real

“Coringa”, blockbuster que deve arrecadar US$ 1 bilhão nas bilheterias do mundo todo, tem como um de seus grandes méritos captar o espírito do tempo.

Em uma das muitas cenas incômodas do filme, uma mulher, terapeuta e negra, comunica ao protagonista, um homem branco e usuário do serviço, que os interesses de ambos estão unidos graças a uma aliança das elites, que decidiu cortar as verbas para a continuidade do trabalho.

Esse diálogo, na visão do escritor Micah Uetricht, revela que, apesar das fronteiras de gênero e de raça, os dois têm um inimigo de classe comum.

O homem branco é Arthur Fleck. Com uma risada medonha e incontrolável, ele é um comediante fracassado, que faz bicos como palhaço e apanha nas ruas de uma metrópole nojenta, corrupta e desigual. Nessa micropolítica de humilhação, a opressão se pereniza.

Sua história muda quando, vestido de palhaço, Arthur mata três jovens arrogantes e bem-sucedidos do mercado financeiro que o agrediram no metrô. O crime divide a sociedade, e Arthur, que até então vivia o abandono pela indiferença do outro, psicotiza, vira herói e assume-se como Coringa. Na sequência, uma convulsão social explode em Gotham City.

Visto como maniqueísta por uns e como uma ode à vitimização por outros, “Coringa” também foi exaltado como melhor filme no Festival de Veneza, já desponta como um dos favoritos ao Oscar e transformou-se em tema de debates nas áreas de cultura, psicanálise, sociologia, política, economia e saúde mental.

Por que, afinal, um filme perturbador como “Coringa” desperta tanto interesse? Com uma performance arrebatadora de Joaquin Phoenix, o longa tem várias chaves de leitura. Uma delas é a de que os protestos violentos em apoio a Coringa, na tela, expressam uma insatisfação difusa, nascida do ressentimento e da revolta com a desigualdade.

Não por acaso, máscaras de Coringa estavam nas ruas do Chile, em chamas, em protestos pela redução do fosso social. Dezoito pessoas morreram.

Em 2015, revela levantamento da ONU, o 0,1% mais rico dos chilenos concentrava 19,5% da renda do país, 1% detinha 33% e os 5% mais ricos ficavam com 51,5%. Dados do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile mostram que a renda dos 10% mais ricos da população, em 2017, foi 39,1 vezes mais alta do que a dos 10% mais pobres, em comparação às 30,8 vezes de 2006.

É nesse clima de tensão do filme e das ruas do Chile que Thomas Piketty volta às livrarias. Autor de “O Capital no Século XXI”, que vendeu 2,5 milhões de exemplares, ele lança agora “Capital e Ideologia”. Seu best-seller de 2013 ecoava o movimento Occupy Wall Street, de 2011, que criticava a desigualdade na distribuição de renda da riqueza nos Estados Unidos entre o 1% mais rico e o resto da população.

No novo livro, o economista francês retoma a questão, defendendo que o fundo do problema está na ideologia. “Dar um sentido às desigualdades, e justificar a posição dos vencedores, é uma questão de vital importância. A desigualdade é acima de tudo ideológica”, escreve Piketty no livro, que sairá no Brasil em 2020 pela Intrínseca.

Para o autor, o período que se estende do pós-Segunda Guerra aos anos 80 foram bem-sucedidos no que ele chama de “coalizão igualitária”. Nesse intervalo, os Estados Unidos e a Europa adotaram fiscalidade progressiva, com impostos impositivos, sistemas de proteção social avançados e acesso à educação. Mas, a partir do “hipercapitalismo” de Ronald Reagan, vitaminado pela queda da União Soviética, o cenário mudou, diz, e dá o tom hoje.

Na onda de argumentos como os de Piketty surfa também a ascendente pré-candidatura de Elizabeth Warren para a Casa Branca. A senadora democrata cresce entre vários segmentos eleitorais como opção real para ganhar as primárias e tornar-se a adversária de Trump em 2020.

Boa parte de sua retórica remete ao tom social de “Coringa” e é construída com base nas ideias de dois conselheiros, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, autores do também recém-lançado livro “The Triumph of Justice”. Ambos atacam a desigualdade e criaram a proposta de um imposto de 2% sobre a riqueza de quem ganha mais de US$ 50 milhões e 1% adicional para as fortunas acima de US$ 1 bilhão. Esse tópico tornou-se central na campanha presidencial da democrata.

Para os dois, franceses e amigos de Piketty, a questão tributária é o debate mais importante nas sociedades democráticas, já que ela define toda as outras ações.

O nó górdio da proposta de Saez e Zucman é que ela poderia provocar o efeito Gérard Depardieu. Em 2012, cansado da alta tributação em seu país, o astro francês mudou seu domicílio fiscal para a Rússia. “Para dar certo, esse imposto sobre riqueza teria de ser global, evitando o deslocamento para países com menos tributos, o que é muito difícil”, diz o economista Paulo Tafner.

O melhor seria a tributação sobre a circulação de renda, propõe ele. “É mais razoável o imposto sobre os ganhos de capital oriundos da operação financeira.” Um ponto para quem é contrário a esse imposto, porém, é que, quando se perde dinheiro em capital mobiliário, a pessoa também é tributada.

Tafner reconhece ser preciso haver mais justiça tributária, melhorando o sistema, incluindo taxação sobre ganhos superlativos e novas alíquotas de Imposto de Renda. “Mas não acho que tributar o estoque de riqueza causará impacto na redução de desigualdade.”

O economista alerta para dois fenômenos que ocorrem ao mesmo tempo: a desigualdade aumenta, mas há uma tremenda redução na pobreza. Pesquisador da Fipe-USP, Tafner avalia que o ponto fulcral para o problema é melhorar o acesso à educação e garantir a igualdade de oportunidades, favorecendo também a mobilidade social.

Assim como no Brasil, a desigualdade no Chile continua alta e há no ar uma sensação difusa de injustiça social e frustração, escreveu o economista Arminio Fraga em artigo na “Folha de S.Paulo” anteontem.
“O caso reforça a tese de que crescimento e equidade precisam caminhar juntos, sob pena de inviabilizar politicamente qualquer estratégia de desenvolvimento”, continua ele.

Como se vê, a desigualdade mobiliza multidões às ruas, aos cinemas e às livrarias, tornou-se protagonista de debates econômicos e seu combate pode ser o mote para eleger o político mais importante do mundo. Compreender sua dimensão na sociedade, entender suas razões estruturais e discutir amplamente propostas para diminuí-la, longe do binarismo, é o caminho para afastar figuras insanas elevadas à categoria de heróis na vida real.

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