quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Vinicius Torres Freire - O conto do vigário dos dois governos Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Presidente se desculpa por comparar boa parte do país a hienas, mas sua militância, não

Jair Bolsonaro pediu desculpas ao Supremo, caso alguém lá tivesse ficado ofendido com o fato de a corte ter sido comparada a uma hiena, em vídeo publicado pelo presidente na segunda-feira, e apagado duas horas depois.

Ainda assim, a falange revolucionária do bolsonarismo, sua autodenominada “ala antiestablishment,” reafirmou com outras palavras a mensagem do vídeo apagado, que não era apenas de injúria contra parte importante da sociedade civil e política organizada, mas uma convocação militante. O filmete do leão acossado (Bolsonaro) terminava com um chamado para que “conservadores patriotas” defendessem o presidente da oposição, das hienas e também dos isentões: “quem não é por nós, está contra nós".

As peripécias da história do vídeo, similares às de outros episódios de morde e assopra, indica que o bolsonarismo revolucionário está forte e sacudido, ainda que por ora contido no bunker do Planalto ou em catacumbas digitais. Continua, assim, o conto dos dois governos.

Um governo, de reformas econômicas, é motivo de conversa das elites e da maior parte da opinião pública como se normal fosse, goste-se ou não de seu programa. Outro, prega a “quebra do sistema”, uma revolução moral, o esmagamento da esquerda e da participação social no governo, faz ameaças aos Poderes e, na boca do próprio Bolsonaro, elogia a tortura e a ditadura.

O governo “do bem” é em parte importante tocado pela regência provisória do parlamentarismo branco, por lideranças do Congresso, que também limita as iniciativas prática do governo “revolucionário”. A ala anti-establishment, no entanto, age com liberdade nas relações exteriores, nos direitos humanos e ambientais e continua a atuar desimpedida no departamento de imprensa e propaganda, mantendo a exaltação militante, quem sabe o desejo de subversão.

Os adeptos e propagandistas do programa econômico frequentemente observam que os desvairados do governo podem atrapalhar as “reformas”, daí o seu caráter mais daninho. Um velho comunista ou um bolsonarista de primeira hora poderiam dizer, porém, que a “ala anti-establishment” apenas espera a mudança da “correlação de forças”, como diz o clichê.

Gustavo Bebianno, um dia da cúpula bolsonarista, disse nesta-terça ao site “Congresso em Foco” que “tudo indica” que Bolsonaro vai tentar uma “ruptura institucional”. Não é preciso ir tão longe para se preocupar com o bolsonarismo revolucionário, mas notem o tipo de conversa que estamos tendo neste país.

De onde veio o manifesto reescrito do vídeo das hienas? Ainda na noite desta terça-feira, Filipe Martins, ideólogo do bolsonarismo e assessor de assuntos internacionais do presidente, mantinha no ar o seguinte tuíte:

“O establishment não gosta de se ver retratado, mas ele é o que ele é: um punhado de hienas que ataca qualquer um que ameace o esquema de poder que lhe garante benefícios e privilégios às custas do povo brasileiro. Isso só mudará quando o Brasil se tornar uma nação de leões”.

Diante de tal conhecimento, qual perdão para o presidente? Na hipótese mais benigna, ainda muito grave, Bolsonaro não tem controle sobre mensagens difamatórias e destrutivas da harmonia entre os Poderes. Ou, então, Bolsonaro apenas administra os avanços e mordidas dos seus “conservadores patriotas”, fingindo escusas para inglês ver, esperando o momento certo para abrir as porteiras.

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