quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Ascânio Seleme - Vomitando barbaridades

 - O Globo

Guedes provou ser tão tosco quanto seu chefe e o filho do seu chefe 

‘Não conheço, nunca vi ninguém que tenha sido prejudicado pela intervenção militar de 1964”. A frase, de um bolsonarista convicto, foi recolhida numa rede social e mostra que o seu autor, além de míope, tem um olhar enviesado da História. Míope porque, com mais de 60 anos de idade, não consegue enxergar ninguém que tenha sofrido com a ditadura. Olhar com viés porque chama um golpe de Estado seguido de uma ditadura sangrenta de intervenção militar. Contestado por um amigo da rede, o autor emendou para pior. “No geral, pessoas não socialistas nunca tiveram problema”.

Parece mentira, mas não é. São aspas verdadeiras. Tem gente que realmente pensa assim, resultado de um misto de ignorância e desinformação. Muitas pessoas nunca quiseram ver, preferiram fechar os olhos, são desinformadas deliberadamente. Optaram por tocar a vida enquanto outros perdiam as suas porque eram “socialistas”. Claro que a pessoa que escreveu essa barbaridade nem sabe direito o que é socialista, ou socialismo, e juntou no mesmo saco todos os que se rebelaram contra a tirania, mesmo que fosse pela palavra, pelo protesto.

O sujeito escrevia sobre o AI-5 mencionado primeiro por Eduardo Bolsonaro e agora por Paulo Guedes como uma alternativa para o caso de uma radicalização da esquerda. Segundo ele, o AI-5 foi apenas um detalhe numa “época onde quem não devia, não foi prejudicado”. Chamá-lo de obtuso seria um elogio e nem valeria a pena gastar tempo, energia e texto com pessoas assim se elas não fossem uma praga no Brasil. Uma praga que, agora se sabe, leva embarcado também o ministro da Economia.



Enganou-se quem julgava Paulo Guedes um homem politicamente inteligente. Ele provou ser tão tosco quanto seu chefe e o filho do seu chefe. Um ignorante político, um homem escorregadio, esquivo. No passado, quando dava aula na Universidade do Chile sob o comando de um general, pouco se importou com a ditadura de Pinochet, alegando numa entrevista à “Piauí” que ela era irrelevante do ponto de vista intelectual, como lembrou ontem o colunista Bernardo Mello Franco.

O ministro falou porque quis. Não foi provocado, abriu o bico por iniciativa própria. Proferiu espontaneamente a maior asneira de toda a sua curta carreira de servidor público. Talvez tenha sido a maior besteira jamais pronunciada por Paulo Guedes. Mas, como antes de assumir o Ministério era um economista de baixo relevo, é impossível fazer esta confirmação. Depois, tentou se corrigir, e acabou sendo ridículo. “(Vocês querem) fazer curva para sair do meu objetivo. Meu objetivo é esclarecer vocês sobre economia, e vocês transformaram agora em AI-5, em não sei o quê”.

Ele não foi infeliz apenas ao citar o Ato nefasto, mas também ao comentar suas alegações. Disse que a esquerda (pensava em Lula, mas não o mencionou) quer “levar o povo para a rua para quebrar tudo”, e acrescentou que “isso é estúpido, é burro”. E então cometeu uma contradição. “Nossa democracia é extraordinária. Ela é resiliente, resistiu à hiperinflação, duas hiperinflações, à maior recessão da história”. Democracia que resistiu a isso tudo e suportou as manifestações de 2013 não vai aguentar uma convocação do Lula, que, como se vê, não consegue mobilizar sequer os seus? Fala sério, Paulo Guedes.

No momento de deboche e ironia, ele sugeriu que a esquerda brasileira poderia pegar em armas e invadir o Palácio do Planalto. Francamente, somente uma mente alucinada imaginaria esta hipótese. Mais fácil a turma do outro lado invadir o Congresso e o Supremo. É com essa turma que o ministro deveria se preocupar. Ela começou a aparecer ainda nas manifestações de 2013 e depois naquelas em favor do impeachment de Dilma. Saía com cartazes e faixas pedindo intervenção militar, mas foi ignorada pela maioria.

Embora tratado como tolo e inofensivo, o agrupamento ultradireitista seguiu aparecendo em protestos e foi se consolidando, sobretudo durante a campanha presidencial do ano passado, estimulado pelo seu candidato. Então, encastelou-se na sua truculência como se fosse o único vitorioso com a eleição de Jair Bolsonaro. Como se enfim lhe tivessem dado razão. E saiu por aí, vomitando suas barbaridades. O fato de Eduardo Bolsonaro usar esse discurso é normal, é genético. Quem surpreendeu foi Paulo Guedes. Ou não?

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