domingo, 24 de novembro de 2019

Dorrit Harazim - Filhos...

- O Globo

Comandar uma nação anda puxado. Some-se a isso a atual safra de pais/mandatários que geraram herdeiros propensos à combustão

Não tem sido fácil para mandatários garantir-se no poder. Tanto primeiros-ministros em coalizão como governantes de apetite vitalício ou presidentes eleitos com folga têm passado por solavancos de vulto. Alguns por serem usinas de problemas autogerados, outros por enfrentarem cobranças sociais que deságuam nas ruas. O fato é que o ofício de comandar uma nação anda puxado.
Some-se a isso a atual safra de pais/mandatários que geraram herdeiros propensos à combustão. Nesta categoria está o presidente Jair Bolsonaro e seus três “meninos” de 35,36 e 38 anos de idade. Encrencas variadas, com foco em milícias. Também está o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cujo inquérito de impeachment anda a passo acelerado no Congresso. Seus “boys” Don Jr. (41 anos), Ivanka (38) e Eric (35) compõem com o pai um permanente emaranhado de conflito de interesses.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que acaba de ser indiciado por fraude, suborno e quebra de confiança, é outro integrante em apuro multiplicado. Seu filho caçula Yair, militante digital extremo que chegou a ser banido pelo Facebook por uso de linguagem de ódio, volta e meia arrosta impunidade.

Problemas só de plebeus que se alternam no poder? Em monarquias, abalos não demandam a troca do soberano para serem considerados sísmicos. Ainda assim, doem. Esta semana, a monarquia constitucional britânica sob Elizabeth II há sete décadas entrou em estado de choque. Uma crise desencadeada pelo príncipe Andrew, terceiro e filho predileto da rainha segundo a biógrafa Sarah Gristwood, foi acachapante. O caso eclipsou temporariamente a agonia nacional chamada Brexit, que dura desde 2016 e já engoliu três primeiros-ministros.

Ao nascer 59 anos atrás com o título de duque de York, Andrew era o segundo na linha sucessória da Casa de Windsor, atrás do irmão primogênito Charles. Hoje, com a mudança das regras de sucessão ao trono adotadas em 2011, ele está em oitava posição. Ou seja, chances nulas de herdar a Coroa. Ainda assim, o escândalo no qual desempenha protagonismo cada vez mais inexorável é visto com horror. Trata-se de uma tragédia anunciada há anos.

Desde 2007, quando o financista americano Jeffrey Epstein recebeu uma pena inexplicavelmente leve por aliciar garotas para fins sexuais (inclusive uma menor de idade), seria de se supor que seu invejado círculo de amizades e conexões globais dele se distanciasse. Mas nem todos do vasto leque de famosos se eclipsaram, entre estes, o príncipe Andrew, que conhecia e frequentava Epstein com assiduidade desde os anos 1990. Epstein foi uma espécie de Mestre do Universo da vida real, um Sherman McCoy do clássico “Fogueira das vaidades”, de Tom Wolfe. Após cumprir pena de 13 meses de detenção leve em 2008, voltou à ativa, com poder de influência e sedução recalibrados. Além de avião particular, ilha privada, iates, propriedades cinematográficas em vários países e a maior mansão de Manhattan (40 cômodos, avaliada em R$ 300 milhões), o financista solteiro tinha uma agenda de contatos estardalhante: empresários, acadêmicos, líderes mundiais, diplomatas, magnatas de Hollywood e da mídia, a nata dos criminalistas do país. Seu A a Z incluía Henry Kissinger e Mick Jagger, Steve Bannon e Mark Zuckerberg. Tinha 16 números de telefone só para localizar o príncipe, 20 outros para Bill Clinton. Era membro da Comissão Trilateral e do prestigioso Council on Foreign Relations, participava de um conselho científico de Harvard, à qual fizera uma doação de US$ 30 milhões. Recebeu, em troca, credibilidade, proteção e mobilidade social.

Até tudo desabar em julho último. Epstein, como se sabe, foi preso ao tentar fugir de Nova York, e a escabrosa rede mundial de tráfico sexual de menores que comandava há décadas ficou escancarada. Somente no estado da Flórida, por exemplo, sua lista de contatos da categoria “massagem” continha 109 prenomes e números de telefone de jovens — algumas delas de apenas 14 anos. Uma delas, Virginia Giuffre, sustenta há anos ter sido forçada por Epstein a fazer sexo com o príncipe, e detalha o encontro.

De início, a Casa de Windsor calou. Diante da insistência, passou a negar. E desde o oportuno suicídio na prisão de Epstein três meses atrás, antes do início do julgamento que deixaria insone um naco da elite, o Palácio de Buckingham talvez imaginou que o caso também se aquietaria, haveria delongas.

Oito dias atrás, contrariando todos os conselhos palacianos, o duque de York se vestiu de fleuma e foi à BBC “falar abertamente” sobre seu envolvimento com Epstein. O Reino Unido parou inteiro para ouvi-lo. E seguiu-se o que é considerado o maior desastre de relações públicas da História. Por constrangedora e desastrosa, a entrevista levou a rainha a destituir o filho predileto de todas as suas funções oficiais, acrescentando apenas que Andrew ainda é membro da família real. Aos 93 anos de idade, Elizabeth II não merecia isso.
Filhos...

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