domingo, 17 de novembro de 2019

Merval Pereira - Os invisíveis

- O Globo

O mais recente invisível a se tornar visível foi o porteiro do condomínio de Bolsonaro e do miliciano Ronnie Lessa

A invisibilidade social é objeto de diversos estudos acadêmicos. Há profissões que têm utilidade no cotidiano, mas são consideradas subalternas, como lixeiros e coveiros, que tornam invisíveis quem as exerce.

Um caso clássico desse preconceito aconteceu com o âncora Boris Casoy que, ao ver uma mensagem de fim de ano de dois lixeiros, comentou na Bandeirantes, sem saber que o microfone estava aberto: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras. O mais baixo da escala de trabalho”. Casoy pediu desculpas ao saber que o áudio havia vazado, mas o estrago estava feito.

Outras profissões, como porteiro, motorista, secretária, garçom, empregada doméstica, fazem parte do dia a dia das famílias e empresas e frequentemente ouvem e vêem coisas que não deveriam ouvir nem ver, mas de tão invisíveis, dão liberdade às pessoas para falarem o que não pode ser ouvido em público. O embaixador Marcos Azambuja, com sua ironia cortante, diz que não há nada mais perigoso do que secretária.

Os personagens invisíveis estão em torno de nós e são temas de trabalhos acadêmicos, filmes e livros. Professores já experimentaram trabalhar de garis e constaram essa invisibilidade social, fruto de preconceito e desprezo.

“A Vida Invisível de Euridice Gusmão”, filme de Karim Ainouz que representa o Brasil na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro, trata de outra tipo de invisibilidade, das pessoas que não podem ter sonhos, esmagadas pela realidade.

Esses são também os personagens do poeta gaúcho da Academia Brasileira de Letras Carlos Nejar, que acaba de publicar o livro “Os invisíveis (Tragédias brasileiras)”, que trata dos flagelados de Brumadinho, dos desalojados pelo desastre do Rio Doce em Mariana, dos índios, do incêndio do Museu Nacional. Nejar, com razão, identifica o livro com “o terrível Brasil contemporâneo”.

A vida política não poderia estar imune a essa invisibilidade, dando proeminência ocasional a porteiros, caseiros, secretárias, motoristas. O mais recente invisível a se tornar visível devido a uma crise política foi o porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde têm casa o presidente Bolsonaro e o miliciano Ronnie Lessa, acusado de ter assasinado a vereadora Marielle.

Ele registrou à mão no livro da portaria que, no dia do assassinato, o ex-PM Elcio Queiroz, outro dos acusados, entrou no Condomínio dizendo estar indo para a casa 58, residência da família Bolsonaro. No relato ao Ministério Público do Rio, o porteiro disse que ligou para a casa 58 e o “doutor Jair” autorizou a entrada.

Depois, ao ver no monitor que ele se dirigia à casa de Ronnie Lessa, avisou pelo interfone a mudança de trajeto, e a pessoa, que ele identificou mais uma vez como sendo o “doutor Jair”, disse que sabia para onde ia o visitante.

Como o então deputado Jair Bolsonaro estava em Brasília naquele dia, ficou constatado que o porteiro mentiu, segundo a investigação. Há muitas interrogações ainda no ar, pois um outro porteiro apareceu na história, falando com Lessa, que autorizou a entrada de Queiroz.

O porteiro está escondido desde o dia da revelação, pelo Jornal Nacional, e recentemente, encontrado pela revista Veja, recusou-se a falar sobre o caso, alegando que estava proibido. Mas tampouco renegou as primeiras informações.

Outro invisível que fez história foi o caseiro Francenildo Santos Costa, da República de Ribeirão, casa em que o então ministro Antonio Palocci se reunia em Brasília com lobistas. O caseiro reconheceu o então ministro como a pessoa que frequentava a casa e era chamado de “chefe”, desmentido Palocci, que negava ter estado lá.

Seu sigilo bancário foi quebrado, o que adicionou um escândalo a mais no caso, que resultou na demissão de Palocci. Francenildo, de 2006 até hoje, tenta receber na Justiça uma indenização pela quebra de sigilo.

Outra figura importante na vida política recente foi Eriberto França, motorista da presidência da República, que denunciou o então presidente Fernando Collor de ter suas despesas pessoais e da família pagas pelo tesoureiro de sua campanha presidencial PC Farias, homem forte do governo. Seu depoimento foi fundamental para o impeachment de Collor.

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