domingo, 10 de novembro de 2019

Míriam Leitão - A modernidade é um projeto inteiro

- O Globo

O aumento da eficiência do Estado não pode servir a um projeto de retrocesso institucional. Não existe meia modernidade

No mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro levou ao Senado três projetos de emenda à Constituição que prometem reformar o Estado brasileiro, ele fez questão de participar de uma reunião com garimpeiros. Bolsonaro prometeu a eles que a lei que permite queimar equipamento apreendido não será cumprida e perguntou quem era o funcionário do Ibama responsável pelos atos dos quais eles reclamavam. Uma autoridade que publicamente intimida servidor e estimula o ilegal vai modernizar o Estado?

Há sempre a imagem de médico e monstro quando se quer referir a uma pessoa com atitudes opostas. No caso de Bolsonaro, a imagem não se encaixa, porque ele raramente é o médico. Dias atrás ele falou em mandar para a “ponta da praia”, ou seja, para lugar de execuções de presos políticos na ditadura, um servidor que não aprovava a licença ambiental para um empreendimento de um empresário amigo do governo.

Na última terça-feira, na conversa com garimpeiros, ele prometeu, mais uma vez, que os equipamentos apreendidos na prática de crimes ambientais não seriam mais queimados. A lei autoriza queimar quando não se pode remover o equipamento. “Se a máquina entrou lá, ela sai. Já dei a dica para vocês, se entrou, sai.” Mas onde essas máquinas estão entrando? Em terra pública e de forma criminosa. Os agentes do Ibama, portanto, estão cumprindo seu dever de autuar. Seria prevaricação se não o fizessem. Depois o presidente perguntou aos garimpeiros: “Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso no estado lá?” E lá é no Pará, um estado onde há uma luta renhida, de anos, entre o legal e o ilegal. Nesse mesmo dia, em que Bolsonaro incentivou o descumprimento da lei, e intimidou publicamente um servidor, ele foi ao Senado para entregar projetos que sua equipe econômica preparou para melhorar as contas públicas em todos os níveis da federação.

Há outros projetos de modernização do Estado sendo preparados. Um deles é o que adia para 10 anos o momento em que a estabilidade do servidor público é concedida. Há argumentos econômicos e administrativos para isso. Hoje o funcionário se torna estável com muito pouco tempo de trabalho, progride na carreira rapidamente, e isso cria distorções. Há vários argumentos fiscais e de gestão para propor reformas que tornem mais ágil e eficiente a máquina pública. Afinal ela é paga por todos nós e para nos servir. Mas tudo fica mais desconcertante quando se está diante de um governo que vai ao extremo de ameaçar servidor que cumpre seu dever.

A questão ambiental não é mais um assunto lateral. É uma das variáveis centrais da equação econômica. Um exemplo foi a moratória da soja. Anos atrás, produtores e exportadores de soja cederam às pressões para não comprar mais de áreas recentemente desmatadas. O acordo foi negociado entre empresas, ONGs, grandes importadores nos mercados para os quais o Brasil exporta. O mercado internacional exige cada vez mais a rastreabilidade, ou seja, ter informações sobre todo o histórico do produto que está comprando. A tecnologia permite saber isso. A moratória foi parte da queda do desmatamento e do aumento da exportação de soja.

Agora há um grupo de produtores que quer acabar com esse tipo de acordo. Ou seja, permitir que o exportador e a indústria de farelo ou óleo comprem de área que pode ter sido grilada e desmatada ilegalmente. O governo já disse que apoia. Se isso for adiante, quem vai ganhar é o competidor do produto brasileiro, muito provavelmente os Estados Unidos. Na entrevista que me concedeu, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que levou um produtor do agronegócio com ele numa viagem ao exterior e lá eles ouviram claramente que o respeito ao meio ambiente é condição para se fazer negócios com o país.

Não basta aos economistas do governo afundarem seus olhos para as regras que podem aumentar a eficiência da máquina estatal sem olhar o contexto geral do país no qual essa máquina vai andar. O moderno é moderno inteiro, não pode ser pela metade. Colocar as contas em ordem é processo doloroso e faz sentido se isso servir a um projeto em que o país avance. Os sinais de recuo são constantes, são assustadores. É preciso sempre se perguntar: a economia, a que é que se destina?

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